Nos dias seguintes ao 8 de janeiro de 2023, quando uma multidão invadiu a praça dos Três Poderes e destruiu símbolos da República, o Brasil se debruçou sobre imagens de TV, redes sociais e câmeras de segurança para testemunhar, por diferentes ângulos, uma barbárie nacional – o acampamento insólito em frente ao QG do Exército, as falhas de segurança que permitiram a invasão, o papel das Forças Armadas, a destruição de obras de arte e do patrimônio público.

Isoladamente, cada um deles poderia se transformar em cenas de filmes de terror. Juntos, ajudam a entender como o 8 de janeiro se encaixa na história recente do país e dialoga com questões ainda não equacionadas do processo de redemocratização.

Nos dias que antecederam ao 8 de janeiro, cerca de quatro mil pessoas desembarcaram em Brasília respondendo às convocações que circularam nas redes sociais – um elemento importante no mosaico desta data. A mídia nacional observou que, a partir do dia 3 de janeiro, começaram a aparecer muitos vídeos de pessoas reunidas em frente ao QG do Exército, fazendo uma convocatória para que outros manifestantes do Brasil inteiro fossem à Brasília para um grande “ato” contra o comunismo e a favor da democracia.

Ainda que a Operação Lesa Pátria da Polícia Federal indicasse que existiam evidências de financiamento para os ataques, e de que grupos específicos os fomentaram, sem as redes sociais não haveria plataforma que permitisse a organização dos atos.

As mídias sociais também estão ligadas a outro fator que ajuda a explicar aquele dia: o ganho de escala da desinformação. Muita gente foi para Brasília acreditando que poderia reverter o resultado das eleições.

Naquele dia acreditavam que era preciso chamar atenção das Forças Armadas para que elas pudessem decretar uma intervenção militar. Diante dessa convicção nasceu a ideia do ato fascista de 8 de janeiro. Assim, por cerca de um ano, mensagens que circularam nas redes sociais espalharam a falsa ideia de que as urnas eletrônicas não eram seguras e de que a Constituição, por meio de seu artigo 142, autorizaria uma intervenção militar em casos excepcionais, para restabelecer a ordem.

A crença na notícia falsa ganhou força quando Bolsonaro deixou de reconhecer a derrota no segundo turno. Mais que isso, o silêncio do presidente alimentou outra fake news, a de que ele precisaria ficar calado por 72 horas, enquanto as pessoas fossem espontaneamente para as ruas, para que pudesse pedir uma intervenção militar sem ser acusado de tentativa de golpe.

Mesmo depois que o então presidente se pronunciou, 40 horas depois do resultado, deu uma declaração ambígua: “Os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral. As movimentações pacíficas sempre serão bem-vindas, mas os nossos métodos não podem ser o da esquerda, que sempre prejudicaram a população”.

Segundo Darren Linvill, professor da Universidade de Clemson, do estado americano da Carolina do Sul, e pesquisador do Watt Family Innovation Center Media Forensics Hub, o uso das redes sociais para espalhar desinformação e engajar eleitores é um fenômeno deste século 21. E isso vale para todo o espectro ideológico, ressalta. Afirma ainda que tais recursos são utilizados pela extrema direita, extrema esquerda, e também pelos partidos de centro.

Muitos movimentos de direita e extrema direita, contudo, acabaram se beneficiando do fato de terem sido os primeiros a explorar as redes sociais como plataforma para comunicação política, como pontua Lisa-Maria Neudert, pesquisadora do Oxford Internet Institute, ligado à Universidade de Oxford. Segundo ela, na Europa os movimentos de extrema direita estão entre os primeiros que olharam para as redes sociais. Isso lhes deu enorme vantagem em relação aos demais.

O cientista social Tiago Ventura, pós-doutorando no Center for Social Media and Politics da New York University, comenta que os estudos de análise descritiva no Brasil sinalizam que o compartilhamento é maior entre grupos de direita e extrema direita. Ao avaliar especificamente o governo de Bolsonaro, afirma que o ecossistema de desinformação criado pelo movimento aparece de forma rudimentar nas eleições de 2018 – com fake news como a do “kit gay” e da “mamadeira de piroca” –, e vai se sofisticando nos anos seguintes, passando a misturar acontecimentos reais com informações falsas.

Na visão de especialistas como Steven Levitsky, autor do livro “Como as Democracias Morrem”, essa é uma expressão central do autoritarismo do século 21 e um risco à democracia, pois tudo isso dialoga com uma nova ascensão global do conservadorismo e populismo de direita, que nas últimas duas décadas chegou ao poder em países como Hungria, Polônia, Estados Unidos, Israel, Itália e Brasil.

Respeitadas as especificidades de cada país, seus líderes autoritários têm em comum o fato de terem sido eleitos dentro das regras da democracia – sem, no entanto, trabalharem para fortalecê-las, uma vez no poder. Pelo contrário: muitos deles têm promovido ou promoveram o enfraquecimento das instituições democráticas, corroendo o sistema de dentro para fora. No exemplo prático da Hungria e da Polônia, onde a direita populista está no poder há mais de dois mandatos, a promoção de mudanças pontuais e reiteradas nas leis que regem o Legislativo e o Judiciário fragiliza o equilíbrio entre os três poderes e tem concentrado forças em torno do Executivo.
E é por isso que, desde o 8 de janeiro, o mundo observa atento o caso brasileiro, diz Oliver Stuenkel, professor associado de Relações Internacionais na Fundação Getúlio Vargas (FGV). Segundo Stuenkel, o Brasil é visto como um laboratório de movimentos radicais, sobretudo da extrema direita. O país talvez seja um dos mais afetados pela disseminação de notícias falsas, e já teve o segundo ciclo eleitoral profundamente afetado por fake news.

O avanço do populismo – de direita e esquerda – geralmente vem acompanhado de polarização social e política. À medida em que transforma oponentes em inimigos e discordâncias em valores inconciliáveis, o discurso populista divide a sociedade. No caso do populismo de direita do século 21, a retórica é a de que o mundo é dominado por uma agenda de esquerda – que preza direitos humanos, direitos de pessoas LGBT e diretos reprodutivos das mulheres, por exemplo – contra a qual é preciso lutar para defender os valores da família tradicional e da religião.

Nas convocações para o 8 de janeiro, era frequente a mensagem de que os atos seriam um sacrifício necessário para evitar que o país fosse “dominado pelo comunismo”. Nas redes sociais circulavam algumas mensagens que colocavam essa questão da urgência. Ou seja, tratava-se de uma “luta” que teria que acontecer naquele exato momento. Se houvesse atrasos, essa “guerra” estaria perdida e um preço elevado seria pago pelas gerações futuras. Então havia esse tom do imediatismo, esse medo do comunismo, medo do Brasil tornar-se uma Venezuela, por exemplo. Estes conteúdos estavam prementes nas convocatórias via redes sociais.
O professor e pesquisador Stuenkel avalia que o dia 8 de janeiro reflete, claramente, a presença de correntes antidemocráticas nas Forças Armadas, na Polícia Militar. Para ele, o ato mostra uma realidade que alguns não queriam acreditar ou aceitar ao longo das últimas décadas: a de que uma parte das Forças Armadas e da polícia no Brasil não aceita o controle civil, ingrediente fundamental de qualquer democracia.

O Brasil viveu sob uma ditadura militar por 21 anos após o golpe de Estado de 1964. Desde 1985, o país vem costurando a redemocratização – um processo que, tanto para Stuenkel quanto para Alonso, ainda é um trabalho em construção. Stuenkel lembra que, desde a Constituinte, os movimentos para consolidar o controle civil sobre as Forças Armadas enfrentaram “muita resistência dos generais”. Um desses momentos, ele exemplifica, foi a criação do Ministério da Defesa em 1999, à qual os militares se opuseram. O mesmo aconteceu com a Comissão da Verdade, formada em 2011 para apurar as graves violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura.
Para a pesquisadora Angela Alonso, ainda hoje o país convive com um “passivo que vem da ditadura”. Uma geração de militares, ela argumenta, que é remanescente daquele período e carrega a ideia de que o melhor Estado é autoritário. A questão das visões antidemocráticas, contudo, vai além dos oficiais mais antigos, argumenta a estudiosa. Para ela há também uma nova geração formada nessa perspectiva, tanto no Exército quanto na polícia – e isso não seria algo de solução nem rápida, nem simples.

Diante das afirmativas acima pode-se concluir que o apagão na segurança, saldos e ecos, indicam que o Brasil ainda vai falar muito sobre o 8 de janeiro e refletir sobre seu significado por um longo tempo. As centenas de pessoas presas por suposto envolvimento com a invasão ainda aguardam julgamento, e a Polícia Federal segue investigando as eventuais negligências, falhas, omissões, erros e crimes que permitiram os ataques.

Os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023, em Brasília, entram para a história do Brasil como a versão piorada da invasão do Capitólio norte-americano. Foi, portanto, o desdobramento do que vinha sendo gestado, por setores da população, de grave afronta ao Estado Democrático de Direito, que, neste episódio, ultrapassou os limites da sua autodeclaração de se constituir como grupo mobilizado para o exercício da liberdade de expressão e de reunião, garantidos pela Constituição.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.