Ter filhos é um dos meus sonhos mais antigos, ainda criança pensava em como seriam os meus filhos e que nome daria a eles. Ao longo da minha vida adulta este sonho não diminuiu, e continuei querendo ter muitos filhos. Quando minha filha nasceu, no auge da pandemia em 2020, eu estava sozinha em uma cidade longe da minha origem, sem família ou amigos. Pouco mais de um ano depois do nascimento dela, coloquei um DIU (dispositivo intrauterino), método contraceptivo que prevê dez anos sem bebê. E hoje não existe a mais remota possibilidade de eu querer engravidar, parir e criar outra pessoa. Tomei ódio da maternidade. Não da minha filha, não de exercer meu papel em criá-la, aprendi a odiar o papel de uma mãe na realidade em que vivo. E explico: sou uma mulher negra com deficiência, sou mãe solo, são muitas camadas de desigualdade que senti na pele até aqui.

Ser mãe é sinônimo de culpa, sobrecarga e invisibilidade na sociedade em que vivemos. É sinônimo de abrir mão de si, dos seus sonhos, para criar os filhos, porque é uma experiência custosa e solitária. Criar pessoas é uma tarefa gigantesca que exige recursos psicológicos, emocionais, financeiros e intelectuais infinitos, por toda a vida. É uma tarefa coletiva, que deve ser feita por todas as pessoas ligadas à vida comunitária, pelas instituições e pelos representantes de um povo. Nada é mais importante do que criar pessoas e este deveria ser um papel profundamente reverenciado. Mas não é assim que as coisas são no Brasil.

Aqui o trabalho de cuidar das pessoas, não só de crianças mas também, é um dos mais precarizados e mal remunerados que existem. O trabalho doméstico como um todo é uma herança escravocrata no nosso país: desde as amas de leite no século XVII, mulheres negras impedidas de amamentar seus filhos para alimentar os das brancas sinhás, até a empregada doméstica que teve seu filho morto ao cair do nono andar de um prédio, enquanto trabalhava na pandemia passeando com o cachorro da madame, em 2020.

Se o Brasil pagasse em reais pelo trabalho de mulheres negras nos cuidados das pessoas, até o dia de hoje, seria dinheiro suficiente para que mais nenhuma mulher negra precisasse trabalhar pelas próximas dez gerações, no mínimo. Um valor que não poderia compensar todo o esforço, as doenças causadas pela sobrecarga, os sonhos sacrificados e oportunidades roubadas que a desigualdade nos arrancou coletivamente.

Segundo o relatório da ONG Think Olga, sobre economia do cuidado, durante os primeiros seis meses de vida de um bebê são gastas 650 horas de trabalho só com amamentação, produzindo leite e alimentando uma criança. E amamentar é apenas uma das tarefas que a pessoa que cuida de um bebê precisa fazer, para garantir o bem-estar e as condições mínimas de sobrevivência. Por semana as mulheres gastam cerca de 61 horas de trabalho não remunerado nos cuidados domésticos. Se fosse um setor formal na economia, o trabalho de cuidado das mulheres equivaleria a 11% do PIB e seria o maior de todos os setores, como indústria e agropecuária. O trabalho de cuidado é a maior riqueza desprezada do país. É como se estivéssemos despejando ouro no vaso sanitário e dando descarga todos os dias.

Aprendi com a professora e pesquisadora nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí o conceito de matripotência, que fala sobre o papel da Ìyá na sociedade iorubá. “Ìyá” poderia ser traduzido para “mãe” num sentido mais simples, mas lendo a fundo percebi que a diferença principal entre as duas categorias é o seu papel social. Na sociedade iorubá, Ìyá é a fundadora do mundo, a entidade que garante unidade em uma sociedade, é o papel mais importante. Nesta perspectiva, o núcleo social mais importante não é um casal heterossexual cisgênero como na cultura ocidental em que vivemos, e sim a dupla Ìyá-prole. A cultura iorubá entende profundamente que a saúde de uma sociedade depende diretamente da saúde mental, física, espiritual e social daquelas que gestam, parem, criam e cuidam das pessoas, por isso sua saúde deve estar acima de qualquer coisa.

Nós, mães e mulheres negras, que desde a invasão desta terra que se tornou o Brasil somos aquelas que mais cuidam das pessoas, somos matripotentes. Somos a maior força produtiva da nação. O futuro do Brasil depende diretamente do fim das diversas violências cometidas contra nossas vidas. A garantia de bem-estar social começa por visualizar e reconhecer a importância fundamental do trabalho de cuidado que sempre exercemos, a despeito de toda invisibilidade e desvalorização.

Precisamos de políticas públicas e privadas que garantam creches e escolas de qualidade, transferência direta de renda para quem cuida, planos de carreira que contemplem a existência de nossos filhos, aposentadoria por tempo de serviço no cuidado, flexibilidade para quem tem pessoas com deficiência em casa, acesso à crédito para empreender, políticas de cuidado com nossa saúde mental, a coletivização dos cuidados em geral. Queremos o direito de estudar, realizar sonhos, descansar e cuidar de nós mesmas, queremos ser vistas, reconhecidas e cuidadas pela sociedade que lucra com os nossos cuidados.

Dedico este escrito à minha avó Nice e minha tia-avó Lia, que cuidaram de toda a nossa família e nem sempre receberam o devido reconhecimento.

 

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.