Chegou linda, e um ar de suavidade invadiu a sala.

“Vamos tomar um chá”?

O que pode atingir uma mulher de trinta anos tomada por um absoluto sentimento de felicidade. Dois filhos e um marido apaixonado. 

 

Sim, marido que às vezes, não sempre, era invadido por uma impaciência estranha, e não falava, mas gritava, berrava, dizia coisas cruéis. Ao final de tudo, quando ela perguntava, ele respondia:  “Eu não disse isso”. Mas, por nada, bastava que algo não fosse do seu agrado ou por motivos outros, ela não entendia. Começava tudo de novo. Ela se encolhia, mostrando toda sua fragilidade, o medo ía chegando a cada palavra. O som dos gritos batia nas paredes e reverberava nas suas vísceras. Ela numa solidão profunda repetia baixinho, vai passar, vai passar. Ficava quieta e encolhida e esperava. Sim, era sempre assim, passava e aí ele vinha e a abraçava e beijava e algumas vezes se afastava em silêncio como se nada tivesse acontecido. A frequência foi aumentando, depois o inesperado novamente, não tinha frequência ou nem motivo aparente, era um vulcão. Com o tempo foi virando quase um costume, pouco a pouco seu corpo já reagia quando os gritos iniciavam, suas mãos ficavam molhadas e um suor frio caminhava nas suas costas, ficava encolhida e num canto. Começou a andar em círculos, assim como uma necessidade, para sentir que ainda estava viva, o chão parecendo mover e engolir o seu corpo. As pernas perdiam as forças. Algumas vezes quando a calmaria chegava, ele sem mais nem porquê tentava acariciá-la, ela o afastava. Outras vezes ele insistia e ela, fragilizada e amedrontada, se entregava, mas com um gosto amargo e uma dor intensa tomando todo seu corpo – tremia e chorava muito. 

 

Procurou a irmã. Vamos tomar um chá. Contou tudo, choraram juntas, conversaram muito e trocaram confidencias. Quando as palavras de carinho e atenção aplacaram as emoções, ela sentiu que não poderia tolerar por mais tempo toda essa angústia. As palavras se apossaram do tempo e surgiram as ideias, chegaram a duas opções:  procurar um médico ou se separar. A segunda alternativa foi descartada, pois os tempos eram muito difíceis para a mulher separada, que era malvista e discriminada até pelas próprias mulheres. 

Opção: o psiquiatra. Foi se descobrindo e se entendendo. Pouco a pouco. Quando ele começava a alterar a voz, ela gritava também e dizia o que lhe vinha à cabeça. Mas agora sem os beijos e sem perguntas, só o silêncio. Esse silêncio fazia muito bem a ambos. Assim os gritos foram se espalhando e ficando raros por meses e anos e eram seguidos de viagens e presentes, tudo ficava morno. Sim, realmente morno. Mas um câncer chegou silencioso, nos gânglios, ela venceu, depois nos seios, ela venceu. Os cabelos caíram, nasceram novamente. Sim, venceu tudo, os gritos e o câncer e o medo. 

 

Seus olhos se abriram. 

Seu corpo e sua mente acordaram. O tempo e a dor, como um verão quente e largo, foram sendo assimilados, nunca soube como as lágrimas e o suor foram embora. Ela começou a sentir que a vida não era apenas uma soma de acontecimentos, mas sim um entrelaçar dos sentidos que atribuímos ao ato de viver. E um perdão foi sendo alimentado dentro dela. Perdão pelo tempo, pela sua falta de coragem, a sua falta de sede, a sua falta de fome pela vida. Era isso, a sua vida. Precisava ordenar sua vida. 

 

Ele ficou doente, ela cuidou, amou, apoiou. 

Hoje o tempo é seu, trabalha como decoradora, arruma ordena e busca a beleza, como faz com os seus dias, os diversos cursos, é um sucesso. 

 

Na sala a irmã olha para ela: “nossa, você me dá medo”.

Ela pergunta: “mas por que?” 

A irmã responde: “na verdade não sei, mas é um sentimento que chegou assim de repente, nem sei porque disse isso”. 

Ela dá um sorriso lindo e sereno e diz:

 – Veja, o chá está servido.