Uns anos atrás ouvi falar pela primeira vez sobre individuação, que de forma bem resumida e superficial seria o processo de um indivíduo tornar-se si mesmo, diferenciando-se do contexto que o cerca. O contexto que me cerca sempre foi rodeado por muitas contradições e violências. E o processo de me individuar, por assim dizer, passou por reconhecer muitas dessas dores e feridas que, em um primeiro momento, pareciam horríveis demais para serem encaradas. Eu fugi de olhar para mim, porque me ver seria enxergar as marcas e cicatrizes que o mundo deixou na minha carne e na minha alma. Ser uma mulher negra no Brasil é uma experiência de horror, mais assustador do que qualquer filme com monstros ou espíritos do mal porque nesta realidade os males são reais e se traduzem em experiências de uma contínua violência, que tem muitas faces e diferentes intensidades. Por isso, aprendi a fugir.
E foi assim, fugindo, que me afastei, dissociei das minhas emoções e do meu corpo. As violências sexuais causaram uma cisão na conexão positiva que tinha com meu corpo. Sinto que passei cerca de 30 anos vivendo fora de mim, entorpecida, anestesiada. Aos poucos fui descobrindo que não podia me afastar somente das emoções difíceis, como a tristeza e a raiva. Quando dissociamos, perdemos também o contato com a nossa capacidade de sentir alegria ou prazer. Não sabia quem eu era, porque para descobrir precisaria olhar para tudo que me compõe, tanto o que é bom, quanto o que é ruim.
O centro da minha vida eram as relações afetivas das quais, por muito tempo, fui dependente, e o trabalho, que definia boa parte da minha identidade. Moldava a minha personalidade de acordo com a pessoa, a situação, para agradar com medo de não ser amada. Não havia um senso de eu, de onde eu partisse para o mundo. Meu senso de eu foi minado desde muito cedo, não aprendi a ter amor por mim mesma, apreço por quem eu sou e autoestima. E foi reconhecendo que eu merecia ser feliz, depois de tudo que passei, que resolvi lutar por mim e me movimentar para aprender a ser eu.
Certa vez escrevi que não existe sensação de inferioridade quando o centro da sua vida é você. E foi isso que descobri aprendendo a ouvir meu corpo, minhas emoções, minha intuição e minha alma de forma sensível. Quanto mais fui aprendendo o que os sentimentos e sensações queriam me dizer, mais fui me sentindo confortável comigo mesma, em habitar meu próprio corpo, em impor limites nas relações e em determinar por mim mesma quem eu era. A sensação de inferioridade, de desajuste, foi diminuindo com o tempo. E aprendi que nos autodefinirmos seria a coisa mais importante que podemos fazer como mulheres.
A poeta e ativista Audre Lorde (1934-1992), americana de ascendência caribenha, fala sobre autodefinição e a importância de definirmos quem somos por nós mesmas: “Se eu não tivesse me definido para mim mesma, teria sido esmagada pelas fantasias que outras pessoas fazem de mim e teria sido comida viva”. A definição do mundo sobre pessoas como eu e Audre Lorde é pejorativa, negativa, cruel e violenta. Por isso é tão importante nos tornarmos quem somos, nos individuarmos, aprendermos a nos ver e nos tratarmos com o amor que o mundo não nos oferta com facilidade. Me tornar uma pessoa, humana, que aprende a lidar com suas forças e fraquezas me fez aprender a apreciar a vida, me colocou no centro da minha própria vida. E este é um lugar que aprendi tardiamente a habitar e de onde nunca deveria ter sido arrancada. Habitar nosso centro nos permite ir para o mundo com tudo de melhor que podemos ofertar.