Pardos e pretos formam a categoria étnico-racial negro para fins de políticas públicas no Brasil, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica). Esta foi uma importante conquista política que se efetivou após uma longa disputa encabeçada pelos movimentos negros brasileiros, nas décadas de 70 e 80. Mas nas últimas semanas o lugar do pardo voltou à pauta no cenário das discussões raciais, através de um texto da escritora Carla Akotirene nas redes sociais, com o título “Devolvam os pardos ao movimento negro”, em alusão às conquistas políticas que incluíram pardos como negros nos dados censitários.
Ainda que outros intelectuais e ativistas reivindiquem o pertencimento e sugerem a “devolução” do termo “pardo” aos movimentos negros, é notável o crescimento das discussões e da visibilidade das pautas relacionadas aos povos indígenas ao longo da última década. Tais debates não avançaram no Brasil nas décadas de 70 e 80 pois indígenas eram tutelados pelo Estado até 1988, sendo tratados como sujeitos sem autonomia jurídica e enfrentando muitas dificuldades para tornar suas reivindicações cada vez mais visíveis.
A grande questão, em minha perspectiva, é que nós, pessoas negras, precisamos compreender que não estamos mais na década de 80 e não cabe mais aceitar a invisibilização das pautas indígenas como uma realidade natural brasileira. O Brasil não é composto apenas por negros e brancos, afirmar o pertencimento da categoria “pardo” à categoria “negro” como uma verdade absoluta (e não como um instrumento político em disputa), significa contribuir para a continuidade do epistemicídio contra os povos indígenas que são donos desta terra, por tempo e direito. Cabe agora o lugar da escuta.
Os povos indígenas existem em todo o território, estão em luta no presente por seus direitos, inclusive contra a tese cruel do Marco Temporal, que pressupõe a posse da terra apenas para aqueles grupos que já ocupassem o território reivindicado até 5 de outubro de 1988, quando foi instituída a Constituição Federal, ignorando completamente os obstáculos infligidos pela violência colonial para a permanência em suas terras de origem.
Aceitar o binarismo racial, que pressupõe a existência apenas de brancos e negros, é ignorar as múltiplas realidades e experiências de um país continental, diverso e complexo. Ignorar a historicidade do termo “pardo” no contexto brasileiro, visto pela primeira vez na carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, usado para descrever a aparência dos povos indígenas que aqui viviam, é engrossar o coro da filosofia do “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Não sejamos politicamente mesquinhos.
Sabemos que a realidade de negros e indígenas aqui é de violência racial, marcada por todas as formas de genocídio, e que não há privilégio em ser negro ou indígena no Brasil de 2023. E não será disputando as migalhas servidas pela branquitude que vamos nos alimentar. Se o termo “pardo” pode acolher pessoas de origem indígena e se esta for a reivindicação coletiva dos movimentos sociais, que seja ampliado para abrigar mais gente. Os Terreiros me ensinaram a colocar água no feijão, a engrossar o caldo para alimentar mais pessoas, se preciso for. Esta é nossa tradição. Graças também ao acolhimento e aos ensinamentos dos povos indígenas, nós, que viemos de outro continente, sobrevivemos à morte e ao desencanto. Que saibamos ouvir as vozes dos donos da terra!