Idealizar pessoas e momentos é algo inerente ao ser humano. Vemos isso acontecer o tempo todo na maternidade – e quando se trata de adoção, essa idealização ganha contornos bem marcados, especialmente pela ansiedade que permeia todas as etapas do processo.
Se pedirmos para que as pessoas definam adoção, certamente teremos “burocracia” na maioria das respostas. Não é de todo errado. As burocracias existem e são, em grande parte, necessárias, considerando que partimos sempre de crianças e adolescentes reais que, em algum momento, tiveram seus direitos mais caros violados. Elas se encontram temporariamente sob a tutela do Estado, antes que possam voltar para suas famílias biológicas, seja o núcleo familiar de onde vieram, ou a chamada família extensa (tios, avós, ou demais familiares, que manifestem interesse e condições de assumirem os cuidados, e com quem haja vínculo) ou serem encaminhadas para adoção.
Acontece que as burocracias também representam o tempo passando, sem trégua. E os pretendentes em geral desejam alcançar logo a parte mais sonhada do caminho: o encontro com a criança ou adolescente que pode vir a se tornar filho e fazer com que o grande sonho da maternidade enfim se realize.
O que mais existem são fantasias. “Vai ser lindo! Vai ser mágico! Vão estourar foguetes e brilhar estrelinhas! Eu terei certeza de que é meu filho assim que bater o olho nele!”
Pode ser que aconteça? Pode. Mas precisa acontecer? Definitivamente, NÃO!
E por terem colocado todas as expectativas na magia do encontro, diante da grande mistura de sentimentos que pode nos dominar em momentos cruciais, muitas pessoas paralisam ao não conseguir, por vezes, identificar as tais “luzinhas piscando”.
É preciso desromantizar o encontro e aceitar que o encantamento mágico pode não acontecer – e está tudo bem.
A primeira vez que falei sobre isso para um grande público foi no ENAPA (Encontro Nacional de Grupos de Apoio à Adoção), em 2018.
Estávamos na mesa final do evento, em uma roda de troca de experiências, e senti o peso do silêncio no ar quando disse que não havia me apaixonado imediatamente pelo meu filho.
O que senti no dia em que o conheci não foi amor. Nem encantamento.
Medo. Medo dos grandes. Foi isso que senti.
Olhei para aqueles olhos gigantes e pensei comigo: será que vou conseguir?
Eu, que tanto desejei a maternidade, abandonei tudo o que achava que sabia quando ela bateu à porta e me colocou no lugar de insegurança.
O que eu faria quando ele adoecesse? Conseguiria dizer não? Educar? Acordar à noite? Ser uma boa mãe? Conseguiria ser o porto seguro daquela criança? Como eu iria finalmente me transformar em mãe?
Foi difícil respirar fundo e me convencer de que as coisas encontrariam o seu caminho e que eu seria a melhor mãe possível. Falei para mim mesma e, em um curto momento com ele no colo e sem ninguém por perto, falei em seu ouvido também.
Desde aquele encontro o tempo passou e dia após dia foi natural me descobrir como uma leoa. Colocando meu filho sempre acima de tudo. Muitas vezes, acima de mim.
Não é dizer que a magia do encontro seja uma mentira. Ela existe. Apenas nem sempre vai se mostrar como parte de um conto de fadas. É preciso soltar o controle e ter coração para sentir.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.
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