Dentre os diversos medos que permeiam a vida de pais por adoção, a curiosidade dos filhos pela própria origem e pela família biológica é um dos maiores. Com isso, vêm as perguntas: tenho mesmo que falar sobre adoção com meus filhos, ainda que eles tenham chegado bebês, e sem memórias da família biológica e do acolhimento? E qual seria a melhor hora para isso?
A primeira questão talvez seja uma das mais importantes dentro do contexto da adoção: independente da idade e do que a criança tenha vivido antes, é nossa obrigação como pais conversar franca e abertamente sobre a origem biológica, na mesma medida que é direito deles, enquanto seres humanos, terem conhecimento desta que eu costumo chamar “pecinha do quebra-cabeça”.
Muitos pais imaginam, no desejo de proteger os filhos, que o melhor seria “apagar” tudo o que foi vivido antes da chegada deles na família, começando ali uma história nova, “do zero”. Afinal de contas, pensam, é aquela velha máxima: se a história na família de origem fosse saudável, boa, com a garantia de direitos e cercada de todos os cuidados, não haveria necessidade de se cogitar o encaminhamento dessas crianças e adolescentes para adoção. E seguindo nesse raciocínio, ao passo que a transição para uma nova família acontece, também migraríamos para uma nova vida, e poderíamos deixar a anterior para trás, apagada.
Correto? Não!
Não se apaga vida. Não se apagam sentimentos. Não se apagam dores, cicatrizes. Nem mesmo quando estamos falando de vida intrauterina.
O que cada um traz de história, haja ou não lembranças racionalizadas, faz parte de quem aquela pessoa é, e precisa ser falado, acolhido e respeitado, ainda que seja dolorido.
Por mais que pareça contraditório, quanto mais novos eles chegam como nossos filhos, maior a nossa responsabilidade em falarmos e os deixarmos à vontade para que também falem da própria história, por um motivo bem simples: quando maiores, eles já vêm com a vivência de certa forma racionalizada. Certamente terão necessidade de nosso acolhimento, de espaço e ambiente para ressignificar relações, memórias, emoções… mas não precisaremos “revelar” que eles foram adotados.
E aproveitando o gancho da “revelação”, a outra grande questão é qual seria a melhor hora para revelar a verdade? A resposta é bem simples: o que eu gosto de chamar de “dia zero”, independente da idade da criança.
A adoção não tem que ser uma pauta pensada e inserida formalmente na vida da família e especialmente dos filhos. Não há que se estabelecer uma idade correta, um momento solene, um roteiro para a revelação do grande segredo. Segredo, aliás, é tudo o que a adoção não deve ser.
Quando digo que ela deve ser revelada desde o dia zero, falo de duas coisas distintas e intimamente ligadas. Quer dizer, antes de tudo, nunca ter segredos. Conversar sempre sobre adoção, sem medos, respeitando, logicamente, a idade e o grau de compreensão da criança e do adolescente. Ser verdadeiro, com orgulho da origem da filiação.
É uma questão de tempo, sim, mas também de modo. Falar desde o dia zero também significa fazer com que ela seja dita todos os dias, fazendo parte da vida da família, transversalmente, sem necessidade de ser revelada. Ela simplesmente é, simplesmente existe, simplesmente faz parte. De forma simples, natural e tranquila, como deve ser.
Filhos serão sempre filhos, é verdade. Mas filhos adotivos carregarão sempre uma pecinha da qual não fizemos parte e que temos a obrigação de acolher e respeitar.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.
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