Um mês após o início da guerra, a quinta em quinze anos na região, 11.352 pessoas morreram – e o mais assustador: quase cinco mil desse total são crianças. Os dados foram compilados pela agência de notícia Al Jazeera (emissora estatal da monarquia do Qatar) e divulgados ontem à noite. Os números foram levantados a partir de fontes oficiais dos envolvidos na guerra e revelam que, nos últimos 30 dias, 4.880 crianças palestinas e 30 israelenses foram mortas durante o conflito.
De 2008 a 6 de outubro de 2023, de acordo com a imprensa internacional, 1.434 crianças palestinas foram mortas, com mais 32.175 feridas, a maioria pelas forças de ocupação israelenses. Destas, 1.025 crianças foram mortas só em Gaza.
O porta-voz do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), James Elder, alertou que a Faixa de Gaza “se tornou um cemitério de crianças”. Em depoimento recente ressaltou que existem milhares de pessoas desaparecidas ou em cativeiro e mais de um milhão que permanecem sem água, alimentos e produtos básicos.
Os números sobre as consequências das guerras sucessivas para as crianças palestinas, nos últimos 15 anos, estão contidos no último relatório da Relatora Especial, Francesca Albanes, sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos.
O Relatório indica que entre 2019 e 2022 cerca de 1.679 crianças palestinas e 15 crianças israelenses sofreram lesões físicas permanentes. Estima-se que todos os anos de 500 a 700 crianças palestinas, em média, sejam detidas pelas forças de ocupação israelenses, com uma estimativa de que 13 mil, na sua maioria presas arbitrariamente, sejam interrogadas, julgadas em tribunais militares e aprisionadas desde o ano de 2000.
Francesca Albanese, relatora das Nações Unidas (ONU), afirma que “o inferno de hoje não pode obscurecer a violência das últimas décadas. Para enfrentar a crise, é imperativo compreender o que a causou. Isso não significa justificar ou minimizar os crimes hediondos contra civis israelenses de 7 de outubro; mas nos obriga a abordar aquele horror no contexto do que o precedeu”.
Assim, para compreender o contexto da guerra precisamos olhar pelo retrovisor do tempo. Neste sentido, os números auxiliam. Dos dois milhões de pessoas que habitavam a Faixa de Gaza antes da guerra, cerca de metade é composta por adolescentes e jovens. Isto significa dizer que esta fatia da população em Gaza praticamente só conhece o regime do Hamas, o bloqueio israelense e um ciclo de guerras e destruições. Em síntese, na Faixa de Gaza, adolescentes e jovens nunca tiveram oportunidade de vivenciar outro cenário que não seja o de violência e morte. Trata-se, portanto, de um território permeado por mistura de sentimentos de ódio e de vingança, que fertilizam o solo do extremismo.
Pierre Krähenbühl, Comissário Geral da Agência das Nações Unidas para a Coordenação de Ações Humanitárias (UNRWA), alerta que existe uma combinação de insegurança, cativeiro e necessidades humanitárias não atendidas na Faixa de Gaza que estava criando as condições para o extremismo das gerações mais jovens. Diz ainda que os dados e as estatísticas sobre a infância das crianças palestinas em Gaza e na Cisjordânia são uma preocupante fotografia do presente e deveriam ser um alarmante lembrete para o futuro.
O relatório da Save the Children, lançado recentemente, reúne os dados anteriores à guerra e os atuais. Os Territórios Palestinos Ocupados estão na lista dos 10 países piores para as crianças. Basta esta comparação: em 2021 o Afeganistão e os Territórios palestinos ocupados registaram o maior número de crianças mortas ou mutiladas devido ao conflito.
Este relatório aponta que “a situação econômica, social e política de mais de cinquenta anos de ocupação por Israel, combinada com os conflitos em curso, continuaram a ter graves implicações para as crianças e adolescentes”. O texto “Palestina. A infância roubada – Instituto Humanitas Unisinos – IHU” informa que no total, em todos os Territórios palestinos ocupados, dois milhões e meio de pessoas necessitam de assistência humanitária, um milhão e duzentos mil são crianças.
Na Faixa de Gaza a situação, mesmo antes da guerra, era alarmante, especialmente do ponto de vista sanitário. As crianças que necessitavam de cuidados médicos tinham que solicitar uma autorização especial para sair da Faixa e, nos primeiros seis meses de 2023, 400 crianças só em Gaza não conseguiram receber os cuidados de que necessitavam na Cisjordânia. Duas crianças por dia impedidas de receber tratamento para doenças graves, crônicas. “Nenhuma consulta com especialista, nenhuma cirurgia, nenhum acesso a medicamentos urgentes ou indispensáveis para a vida.” (“Palestina. A infância roubada – Instituto Humanitas Unisinos – IHU”) A situação não é melhor na Cisjordânia, onde mais de um milhão de crianças não têm liberdade de circulação.
O relatório ressalta que a mobilidade é dificultada pelos postos de controle israelenses, pelas restrições, pelas ameaças regulares dos colonos, pelo medo de violências nos postos de controle. Do terror das detenções. De acordo com os dados da Save the Children, entre 500 e 1000 menores estão detidos nas prisões israelenses, quase a metade dos quais feridos no momento da detenção.
O documento destaca que meio milhão de meninos e meninas palestinos não têm acesso a uma educação de qualidade. “As escolas correm o risco de serem demolidas, os equipamentos são confiscados e as forças armadas israelenses muitas vezes atacam perto ou dentro de instituições escolares utilizando gás lacrimogéneo.” (“Palestina. A infância roubada | Combate Racismo Ambiental”)
Mais de 80 escolas na Cisjordânia enfrentam a presença diária das forças israelenses e mais de 58 escolas estão atualmente sob ordem de demolição ou de suspensão das atividades. Traduzido para a vida cotidiana das crianças palestinas, significa um aumento constante do abandono escolar. (“Palestina. A infância roubada – Instituto Humanitas Unisinos – IHU”)
Por diferentes razões – o cerco, as guerras, o regime do Hamas, em Gaza, a violência dos colonos e as restrições à mobilidade na Cisjordânia – uma geração de jovens palestinos está crescendo, perdendo a confiança no valor da política, do compromisso, da diplomacia e das ajudas internacionais.
A Save the Childrem alerta que se trata de uma geração que cresce numa intermitência de guerras. Os conflitos não resolvidos não só não foram dissipados com o passar do tempo, como se agravaram na ausência de soluções justas. Provavelmente esta guerra, como as anteriores, demonstrará que não existe solução militar para o problema de Gaza, porque o problema de Gaza não é apenas erradicar o Hamas, o seu braço armado, e a organização do poder, da burocracia e do sistema social que expressou na Faixa por dezesseis anos.
Encontrar uma solução para Gaza e para a segurança do Estado de Israel significa encontrar a fórmula para instituir uma cultura de paz. “Cada confronto nos últimos quinze anos, cada novo ciclo de ataques, empurrou um número crescente de jovens para as franjas radicais e grupos extremistas.” (“Palestina. A infância roubada | Combate Racismo Ambiental”)
Salvar as crianças palestinas da exposição ao risco de extremismos é o desafio da comunidade internacional, mas também o desafio interno ao Estado de Israel que pensa hoje em combater um inimigo no presente, sem se perguntar o que será de Gaza amanhã, qual será o futuro da Faixa, como evitar que haja mais uma geração que associe a vida cotidiana à guerra, à morte e à vingança. E, olhando para o futuro, quando os combates finalmente pararem, os custos para as crianças e adolescentes atravessaram milênios por causa dos terríveis traumas enfrentados pelos sobreviventes. Simplesmente, devastador!
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.
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