As notícias falsas estão tornando ainda mais cruel a tragédia no Rio Grande do Sul, prejudicando o trabalho das forças oficiais, de voluntários e de doadores para resgatar e amparar as vítimas. São várias as linhas de fake news disseminadas pelas redes sociais, como a que a atriz Regina Duarte publicou recentemente no Instagram, ao compartilhar um vídeo do deputado português André Ventura, líder do partido Chega, de extrema-direita de Portugal.
A atriz e ex-Secretária Especial de Cultura do governo Bolsonaro afirmou, no texto-legenda de sua postagem, que o governo federal não estaria aceitando doações de Portugal para os brasileiros do Rio Grande do Sul. O Instagram advertiu a usuária e em seguida colocou o aviso de “Informação Falsa” na publicação, depois da checagem feita por verificadores de fatos independentes.
Esforços e recursos são desviados para buscar a origem da informação e investigar sua fonte, buscando reduzir os danos que fake news causam em várias frentes, como por exemplo:
* afirmando que o Estado (governo estadual e federal no caso) nada faz para resolver os problemas e atender as vítimas, que só contam com os voluntários;
* afirmando que existem supostas obstruções do Estado ao atendimento das vítimas;
* atacando pessoas famosas que doam ou ajudam de outro modo;
* produzindo pânico econômico;
* explorando violências ou ataques à segurança de vítimas.
Com o objetivo de sustentar que o Estado não atua e ainda atrapalha foram veiculadas notícias falsas sobre o impedimento de caminhões de doações chegarem as cidades; sobre suposta proibição da ANVISA da saída de aviões particulares carregados de doações (veiculada por dois médicos que depois não quiseram dar os dados dos aviões); sobre pessoas que morreram num hospital tendo pedido socorro ao Exército, que não as atendeu – e que fez com que o pessoal do Exército fosse checar a notícia no local.
Vídeos de outros lugares ou momentos têm sido disseminados como se fossem da tragédia atual. Um deles que diz mostrar destruição de doações para vítimas – foi filmado em no ano passado, em Eldorado, mostrando a liberação de espaço. Outro mostra uma mulher afirmando que, em Lajeado, as doações estariam retidas esperando o Presidente Lula.
Essas são apenas algumas, dentre as muitas fake news sobre a atuação do Estado, focalizando o governo federal ou o estadual.
Outro bloco se concentra em ataques a pessoas famosas envolvidas em doações ou ações locais na tragédia, como os feitos ao influencer Felipe Neto, dizendo que a doação de purificadores de água foi superfaturada, para ele obter vantagem. A empresa que produz os aparelhos negou o fato, com documentação dos valores pagos.
A terceira linha visa espalhar pânico econômico, de possível falta de alimentos, motivando corridas a supermercados e provocando maiores danos a economia e à toda a população.
A quarta simplesmente explora crimes, como molestamento sexual nos abrigos e roubos, fomentando o ódio.
Isso já ocorreu em outros momentos cruciais da vida nacional, em outras tragédias socioambientais, durante a pandemia de COVID 19, nos ataques a escolas (2021-2022) e nas últimas eleições, com extraordinário estímulo a polarização da população. Também tem ocorrido e perturbado, pelas redes sociais, tanto a vida de pessoas famosas como de pessoas comuns.
Pesquisa do Instituto Locomotiva, realizada em fevereiro de 2024, apurou que oito em cada 10 brasileiros admitem já ter acreditado em fake news e, também, reconhecem que há grupos e pessoas pagas para produzir e disseminar notícias falsas. Disseram sentir-se ingênuos, com raiva ou com vergonha ao descobrirem ter sido enganados por uma fake news.
Quem produz e veicula notícias falsas, mentiras? Por que? Quem dissemina, por que e para que?
Algumas fake news têm endereço certo – grupos ideológicos, bolhas de pessoas que pensam de forma parecida e que são capazes de fazer circular, intensamente, notícias falsas, em que acreditam ou não. É assim que as opiniões desses grupos são fortalecidas, reiteradas, mobilizando-as para uma ação presente ou futura. São discursos perigosos, que inflamam o ódio. Quem as produz são lideranças locais ou internacionais, extremistas, com interesse em manter um grupo alimentado e em prontidão.
Outras partem de pessoas que ouvem ou leem uma notícia e não param para pensar se ela tem uma fonte confiável ou se, ao menos, não é absurda, e vão encaminhando pelas suas redes. Imagens chocantes, histórias de crimes… Quando numa notícia, verdadeira ou falsa, aparece o nome de alguma pessoa famosa, o interesse é despertado e a reprodução é mais pelo nome famoso do que pelo conteúdo. E assim uma fake news anda livremente pelas redes e é difícil até identificar seus caminhos.
E há ainda um fenômeno chamado trolagem. É, como fake news, uma palavra importada para designar a atitude de zombar, sacanear o outro. Brincadeira irresponsável e violenta para despertar interesse e perturbar uma causa ou alguém que é o alvo da trolagem. É um fenômeno agressivo, sem a preocupação com o dano que possa causar, é uma doença que se agarrou nas plataformas, sem respeitar qualquer regra de convivência.
A sociedade lutou, durante décadas, para conquistar direitos que protegessem as pessoas de preconceitos e agressões. Num caminho de civilidade, vieram leis que firmaram regras de convivência gerais, para que as pessoas não fossem atacadas nem sofressem violência física ou psicológica em razão de sua cor de pele, origem, gênero, poder econômico, opções de vida, ideologia.
A internet apareceu no cenário da humanidade, há pouco tempo, como uma miragem de liberdade total – parecia um sonho, todos poderiam ter voz, todos poderiam ter acesso a tudo e a serem ouvidos. Ocorre que a internet foi dominada, apropriada, por empresas transnacionais, que se aproveitam, até hoje, dessa ideia de liberdade total, para ignorar as leis de cada país e qualquer ética humana. E, nesse cenário, as plataformas acolhem troladores e mentirosos “com causa”, perfis reais ou falsos, independentemente das consequências de sua participação nas redes. Não me esqueço do desprezo e negativa de donos de plataformas em retirar das redes perfis neonazistas que incentivavam assassinatos nas escolas, apesar de termos um Estatuto da Criança e do Adolescente que deve ser respeitado por todos.
A regulação da internet é cada vez mais urgente. A Comunidade Comum Europeia conseguiu uma boa legislação. Nós, aqui no Brasil, tivemos um projeto de lei aprovado pelo Senado e rejeitado pela Câmara e, há anos, patinamos nesse assunto, porque há muitos interesses em manter a internet desregulamentada.
E como pessoas comuns entram nesse jogo, desavisadamente, e podem tornar-se, elas próprias, fabricantes de mentiras? Atualmente, comercial de um novo modelo de celular, com tecnologia da Inteligência Artificial mostra como é fácil fazer isso. Mostra uma mãe manipulando no celular vídeo de um teatro infantil, onde ela joga para os lados as imagens das crianças que estavam na frente do palco e traz, para o centro, a imagem do seu filho. Pronto, criou uma história falsa. A vovó sorri. Isso parece diversão, brincadeira sem maiores consequências. Será mesmo?
Tão urgente como a necessidade de regulamentação das plataformas e redes que ajudam a circular fake news, é recuperar a nossa humanidade, a ética da vida em comum, no cotidiano. Uma tragédia, como a do Rio Grande do Sul, não pode ser palco de disputas de ódio nem de trolagem irresponsável.
Em dúvida sobre uma notícia, melhor não compartilhar antes de checar. E pensar sempre nas consequências que uma notícia, uma imagem, um vídeo podem ter. Na dúvida “Deixa o coração falar.”
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