Ao longo da história, os cabelos se consolidaram como símbolo primeiro da essência feminina. As mulheres sempre foram representadas por abundantes e belas madeixas. No centro de lutas políticas e de gênero, de desejos, de exploração, de submissão e desvios de todos os tipos – lá estavam os cabelos. Mergulhar nesta história pode ser fascinante, mas também complexo e doloroso.
A história de Adão e Eva é obviamente uma maçã, uma cobra, mas também é uma esplêndida cabeleira. E foi Maria Madalena, prostituta para uns, amante de Jesus para outros, que num ato de amor e humildade enxugou os pés de Cristo com os seus cabelos abundantes. Em toda a história da arte, Botticelli, Veronese, os impressionistas, Klimt e muitos outros, oferecem-nos corpos de mulheres em que os cabelos são um elemento essencial nas pinturas.
Para as religiões, o imperativo sempre foi: cubra-os. Esta tem sido historicamente a forma mais comum de tratar o cabelo das mulheres. Quaisquer que sejam as épocas, regiões ou culturas, foi imposto às mulheres o uso constante do véu na cabeça. Na antiguidade, as gregas o usavam por motivos de modéstia, o véu associado à figura das virgens vestais e, portanto, um sinal de virgindade. Representa o hímen da mulher, a sua castidade, e por isso as noivas usavam um véu que o homem iria retirar na noite de núpcias.
Mais tarde, o véu se tornaria o símbolo da submissão a Deus, principalmente durante a oração. O apóstolo Paulo, no Novo Testamento, diz muito claramente:
“Toda mulher que reza ou profetiza com a cabeça descoberta desonra seu chefe. É como se ela estivesse de cabeça raspada. Se, pois, uma mulher não quer usar o véu, então que ela corte os cabelos! Mas se é vergonha para a mulher ter os cabelos cortados ou raspados, que use o véu”.
Aqui vemos emergir o cerne do assunto: o cabelo de uma mulher, desonroso quando visível, podia ser vergonhoso ao ser cortado e raspado. No Alcorão, o véu é usado para proteger as mulheres de insultos e ofensas:
“Ó Profeta, dize a tuas esposas, tuas filhas e às mulheres dos fiéis que (quando saírem) se cubram com as suas mantas; isso é mais conveniente, para que se distingam das demais e não sejam molestadas”.
O Talmude, principal texto judaico, denuncia que o cabelo das mulheres sugere sensualidade. Após o casamento, muitas mulheres judias passam a cobrir os cabelos em público. Como este mesmo livro religioso defende que as mulheres cuidem de sua aparência, as mulheres judias podem optar por usar perucas em vez de lenços para parecer elegantes. Um eterno e estranho paradoxo.
O cabelo feminino prenderia o homem – e assim as mulheres seriam, portanto, quase nada além de cabelos. Como explicar essa obsessão? O teólogo e filósofo Søren Kierkegaard resume bem, escrevendo que o cabelo torna a mulher bonita; esta é a sua força, mas também a sua fraqueza. “O cabelo é a sua beleza, a sua força. Ele cativa o homem, acorrenta-o e prende-o à terra”. Para libertar o homem é necessário, portanto, esconder os cabelos. Outro filósofo controverso, Arthur Shopenhauer, escreveu no século XIX: “a mulher é um animal de cabelos longos e ideias curtas”.
Quando o cabelo da mulher precisa ser coberto, velado, está intimamente ligado a um erotismo, muito poderoso e até ameaçador. O cabelo é temido: visto como arma de sedução, no sentido etimológico de seducere, que significa desviar-se do caminho reto. Capaz até mesmo de distanciar o crente do seu dever para com Deus. “O perfume dos seus cabelos fez de mim o perdido do mundo”, como escreveu o poeta persa Hâfez, no século XIV.
O tema é recorrente e retomado pela literatura ocidental. No poema La Chevelure, escrito por Baudelaire em 1861, o cabelo da amada é como um oceano negro, no qual o outro está encerrado. O cabelo assume uma dimensão quase metafísica, capaz de fascinar e atiçar o desejo dos homens.
A personificação do cabelo é poderosa a ponto de pensarmos nele como a incorporação da essência da feminilidade. O cabelo não só faz a mulher, mas de forma mais profunda: é a mulher. Ou, pelo menos, isso acontece por metonímia. Parafraseando Simone de Beauvoir, quando em “O Segundo Sexo” mostrou o funcionamento desse elemento simbólico mitificado e idealizado: um espelho para o homem, uma forma de projetar suas fantasias e desejos, mas também os seus medos e repulsas.
Diante de tantas interpretações simbólicas, uma das grandes humilhações envolvendo cabelos continua sendo a sua tosa. Esta pena, praticada desde a antiguidade, era usada para punir mulheres suspeitas de terem mantido relações íntimas com o inimigo.
Carlos Magno, já no século VIII, condenou as prostitutas à chicotadas e cortes de cabelo como punição pela sedução. À primeira vista, poder-se-ia pensar que este cortar forçado seria apenas uma expressão de violência simbólica: onde a mutilação corporal é indelével, o cabelo volta a crescer. O dano causado teria, como alvo principal, a dor psicológica e mítica.
Quando analisada intrinsecamente, a repressão através da tosa é um ataque mais profundo aos corpos das mulheres. Em seu livro “A França Viril”, o historiador Fabrice Virgili considera o tosar dos cabelos femininos em público um “castigo capilar de gênero”: é o cabelo, não visto como matéria morta, mas como extirpação última do feminino em sua dimensão sensual, publicamente suprimido.
As mulheres tosquiadas foram punidas por terem mantido relações sexuais com soldados alemães durante o período de ocupação nazista na França. Elas eram acusadas de “colaboração horizontal” com um inimigo de guerra e foram alvo de linchamentos morais públicos. No final, “cachos loiros e castanhos cobriam o chão”, menciona o jornal L’Assaut, publicado em 25 de setembro de 1944. Esta prova visível e tangível de cabelo cortado encarna o pecado, as mulheres são punidas onde erraram: na sua beleza e na sua carne. Cortar o cabelo das mulheres foi assim uma forma cruel e paradoxal de exacerbar a virilidade nacional prejudicada pela guerra.
Escondido, adorado, raspado, ridicularizado: o cabelo das mulheres tem sido muitas vezes campo de luta e monopólio dos homens. É por causa dos cabelos que as mulheres sentiram vergonha, é graças a esses mesmos cabelos que quiseram emancipar-se. Na década de 1920, o corte “Joana d’Arc”, que mais tarde seria chamado de “melindrosa”, constituiu uma primeira forma de desafiar uma certa imagem de feminilidade. Ao cortar o cabelo, as mulheres liberam o tempo gasto em modelar, modelar e desembaraçar sem fim. O poeta inglês Radclyffe Hall assim define este corte de cabelo curto: “uma forma de livrar-se dos tormentos infligidos”, de “respirar” e “mover-se livremente”.
Atualmente mulheres raspam o próprio cabelo como forma de protesto. O gesto transforma drasticamente a aparência e põe em causa as fronteiras entre os gêneros. Revela o formato do crânio e ilumina os contornos do rosto, que não são mais emoldurados pelos destaques. Num couro cabeludo liso, os gestos de conquista e sedução tradicionalmente associados ao gênero feminino e as longas madeixas afinal se tornam obsoletos.
A mulher tosquiada não é mais a mulher linchada e humilhada do pós guerra, ela é a mulher libertada. Recentemente, o ato de raspar a cabeça assumiu também uma dimensão espetacular. Nos dias atuais muitas atrizes e figuras públicas expõem suas carecas em público. Nas redes sociais jovens se filmam raspando a cabeça. O processo, portanto, assume um valor performático. Não se trata apenas de mais um penteado da moda, mas de uma atitude de militância que muitas vezes serve para marcar uma ruptura existencial com uma certa expressão de feminilidade.
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