Pesquisa global da ONU, com 25 mil mulheres de 185 países, intitulada “Nós, Mulheres”, apurou que 86% das mulheres citam a mudança climática como preocupação principal para a próxima década. Segundo Relatório do IPCC, meninas e mulheres representam 72% do total de pessoas que vivem em condição de extrema pobreza no mundo, além de sofrerem discriminação estrutural de gênero e outros fatores socioeconômicos e culturais. Mulheres e crianças também são as maiores vítimas de desastres provocados por eventos climáticos extremos.
Uma economista franco-estadunidense, Esther Duflo, tem se destacado ao pesquisar a desigualdade, o alívio da pobreza e a relação com a mudança climática. Ela é a segunda mulher e a pessoa mais jovem (51 anos) premiada, em 2019, com o Nobel da Economia. É cofundadora, codiretora e pesquisadora do J-PAL (Abdul Latif Jemeel Poverty Action Lab) e professora de Economia do Desenvolvimento no Massachusetts Institut of Technology (MIT).
Duflo defende que é preciso testar inúmeras soluções para observar o que é mais efetivo para a redução da pobreza e promoção das populações mais vulneráveis. E assim ela aportou nas relações da desigualdade com a questão climática.
Em junho deste ano, Esther Duflo esteve no Brasil, no SESC SP, falando sobre adaptação climática, justiça climática. Logo ressaltou que a mudança climática não é hipótese, mas uma realidade atual, capaz de revelar impactos diferentes no mundo, pelo enorme passivo, resultante da desigualdade da contribuição do modo de vida dos países e grupos populacionais chamados desenvolvidos, que penaliza as populações mais vulneráveis.
Os dados e mapas dos estudos por ela utilizados reiteram que os países desenvolvidos no Norte global são os que mais contribuíram e continuam a contribuir para o aquecimento global e a mudança do clima, enquanto que os países do Sul global são os que menos contribuíram e os mais impactados.
No entanto, os países desenvolvidos não aceitam fazer as devidas compensações. Essa questão tem sido debatida nas Conferências Mundiais de Meio Ambiente, nas COP e outros fóruns da ONU mas, até agora, somente se chegou a “contribuições” que esses países se dispõem a fazer para os países impactados, quase sempre por meio de empréstimos. Empréstimos e mesmo eventuais doações que sempre têm condicionantes, e muitas vezes resultam em benefícios para o próprio país que faz o aporte de recursos.
As populações do Sul global são, também, as que convivem nas áreas mais quentes do planeta. É estimado que, até 2100, essas regiões é que terão os maiores níveis de temperatura, embora o aquecimento seja global. Em princípio todos os seres humanos estão expostos a mudança climática, mas as condições de vida dos diferentes grupos fazem a diferença entre a vida e a morte, entre a possibilidade de alívio e o desamparo. Seis milhões de mortes oriundas das mudanças climáticas podem ocorrer, até 2100, em países fora da OCDE.
Isso significa que é possível que os países do Sul global tenham maiores e mais frequentes desastres climáticos, com maior número de populações atingidas.
Também é preciso considerar que no interior das regiões, mesmo nos países do Norte global, há desigualdade e população pobre, imigrantes e outros, que sofrem as consequências como nos países mais penalizados, pois a pobreza não pode ser definida simplesmente com o critério do Banco Mundial, menos de 2 dolares∕dia.
A pobreza, onde quer que ocorra, é multifacetada – há determinantes de gênero, raça, origem, acesso à saúde e à escola, tipificação do território que ocupam – como disponibilidade de água, por exemplo, entre numerosos fatores que têm que ser considerados em cada caso.
A relação entre desigualdade, pobreza e mudanças climáticas tem sido reiterada em cada desastre climático.
Pesquisa do Datafolha, divulgada em junho de 2024, ouviu os gaúchos sobre os impactos do que é considerado o maior desastre climático da história do estado do Rio Grande do Sul. A população mais pobre, negra e com menos escolaridade foi a que mais sofreu. Nas cidades atingidas pelas inundações quase metade (47%) das famílias que ganham até dois salários mínimos responderam ter perdido casa, moveis, eletrodomésticos ou o próprio meio de sustento (emprego ou trabalho), enquanto que, entre as famílias que ganham de cinco a dez salários mínimos, 13% relataram prejuízos.
Mais da metade (52%) dos pretos nos municípios afetados relatou algum tipo de perda; entre os pardos, 40%; entre os brancos 26%. Enquanto 14% dos gaúchos pesquisados disseram que foram expulsos de suas casas pela inundação, entre os pretos essa proporção foi de 24% (um em cada quatro). Das pessoas que estudaram até o ensino fundamental, 46% relatam prejuízo com as enchentes, uma diferença de 20 pontos percentuais para os que têm nível superior. Na mesma matéria, o arquiteto e urbanista Wiliam Mog, assessor técnico do Ministério Público gaúcho, “diz que a proporção maior de pobres, pardos e pretos entre os afetados por tragédias climáticas é um padrão nacional pela dificuldade de acesso dessas populações à moradia formal”.
Também foi divulgado pela imprensa que até mesmo nos abrigos emergenciais para os que perderam a casa, houve casos de assédio a mulheres, que vemos nas reportagens fotográficas buscando proteger suas crianças.
Esse é um quadro que tem se repetido nos desastres climáticos no mundo. E que parece não sensibilizar o suficiente os tomadores de decisão, que talvez tendam a esperar que os fenômenos afetem seus pares antes de abrirem os bolsos, apesar dos alertas do IPCC de que toda a humanidade acabará sendo afetada se não forem tomadas as medidas para controlar o aquecimento global e para, finalmente, adaptarmos o modo de vida do andar superior à realidade que, se não os alcançar pessoalmente, alcançará a sua descendência.
A economista Esther Duflo, como outros estudiosos, defende as duas soluções mais abrangentes para se ter um Fundo Global capaz de fazer as devidas compensações e de reduzir os efeitos desiguais das mudanças climáticas e a penalização das populações mais vulneráveis:
– imposição de uma taxa de carbono proporcional as emissões de cada país. Uma negociação que não avança por obstrução dos países que pagariam mais;
– tributação, em 15%, das corporações multinacionais e dos bilionários do mundo. A economista ressalta o acerto da defesa dessa tese pelo Brasil no G20.
A economista trabalha com esse quadro geral, mas focaliza sua pesquisa científica sobre as desigualdades e as microssoluções destinadas a aliviar a pobreza, que é complexa. Seus estudos e experiências, na Índia, no Quênia e outros, ressaltam a importância das pequenas ações, pequenas intervenções que podem ter grande impacto na vida das pessoas.
Diz ela, em uma entrevista para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, que ser pobre leva a inúmeros problemas que, por sua vez, pedem inúmeras soluções. Ela defende que se experimentem soluções, sempre com controle científico do processo e resultados, com testes randômicos. Experimentar até chegar à raiz do problema de cada população, pois as populações são diferentes e precisam de soluções que respondam a essas diferenças. Experimentar soluções aparentemente simples.
Duflo conta algumas experiências. Uma delas sobre a distribuição de mosquiteiros para uma população que ficava doente por picada de insetos durante o sono. Uma solução relativamente simples. A polêmica foi se seriam doados ou vendidos. Sempre aparece essa questão com os argumentos de que as pessoas não valorizam o que é doado, que não iriam usar ou usariam para outro fim, como rede de pesca, ou de que doação prejudicaria o pequeno comércio.
A opção foi distribuir em doação explicando sua finalidade e acompanhando o processo. E no decorrer de um período de tempo foi observado que famílias cujos mosquiteiros se romperam foram ao comércio comprar outro, pois haviam percebido o resultado de seu uso. Para Duflo a lição é que: “As pessoas não se acostumaram com a doação, mas com o mosquiteiro”.
Estamos muito habituados a esperar que um programa social seja uma “bala de prata”, uma política ou ação tão abrangente que resolva o problema da pobreza. Não existem balas de prata para questões complexas como a pobreza e como a questão climática. É preciso fazer progressos sucessivos, tentar coisas que podem ou não dar resultados.
E isso é uma grande dificuldade, de um lado porque a sociedade espera uma solução mágica, de outro lado, os formuladores das políticas não costumam ter esse tempo, nem autorização, para testar, experimentar, refazer. As organizações da sociedade civil são mais afeitas a esse processo. Do governo se exige que não erre, com a ideia de que experimentar soluções é desperdiçar recursos.
Um caso para refletirmos sobre isso é o das moradias destruídas no RS, considerando as famílias que poderão ser realocadas no mesmo espaço, outras onde o espaço não tem mais condições de abrigá-las e terão de ser alocadas em outro lugar, famílias que têm apoio na comunidade, outras que não têm, as que não encontrarão no novo espaço as relações e a infraestrutura a que estavam habituadas, as que não poderão acessar o mesmo emprego ou trabalho ou os locais onde plantava ficaram inóspitos, as crianças para as quais terá de ser encontrada outra escola…enfim, são tantas as situações, que não se pode resolver com soluções homogêneas. Lembrando que essas famílias que perderam as casas pertencem a grupos que não têm condições de entrar no mercado imobiliário e, por falta de opção, se instalam à beira de rios ou nas encostas de morros e também é lá que se encontra mais mulheres chefes de família com suas crianças.
Muitas microssoluções, como orienta Duflo, precisam ser testadas e acompanhadas.
A contribuição dessa economista é preciosa para nos lembrar de que a situação climática tem de ser vista em seu panorama geral, seus macrodesafios mas, também, focalizar as soluções requeridas no cotidiano, especialmente para as populações mais vulneráveis.
Veja Também
Mulheres são maioria da população, mas representam menos de 20% dos eleitos para prefeituras no país
Maioria de novos apostadores em BETs é de mulheres: entenda a compulsão pelos jogos on-line
Ontem inundações, hoje incêndios e chuva preta: o que está acontecendo? Entenda
Como nos proteger das fake news? Dicas que podem nos ajudar antes de comprar um produto, ou uma informação
Retratos do Brasil: cresce número de bebês registrados sem nome do pai