Em 2023, 173.600 nascidos vivos foram registrados sem o nome do pai no Brasil. A informação é da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais, responsável pelos cartórios. Esse número corresponde a 7% do total de nascidos vivos no país, percentual que vem crescendo desde 2018, quando era 5%. Milhares de crianças deixam de ter o nome do pai no seu registro de nascimento.

De outro lado, também há um descompromisso de parte dos pais com o provimento essencial dos filhos que registram. “Hoje, mais de 80% dos casos julgados em varas de família são por falta de pagamento de pensão”, afirma Gustavo Kloh, professor da Fundação Getúlio Vargas (matéria de Bruno Lucca, na Folha de São Paulo, em 10 de agosto de 2024).

A pensão alimentícia é o valor pago a uma pessoa para o suprimento de suas necessidades básicas de sobrevivência e manutenção. É um direito dos filhos e dever de pais separados ou divorciados até o filho ou filha atingir 18 anos de idade. Apesar da palavra “alimentos”, o valor, que é calculado na medida das possibilidades financeiras daquele que tem a obrigação de pagar, não se limita aos recursos necessários para a alimentação propriamente dita, mas também aos custos com moradia, vestuário, educação, saúde. Se o filho ou filha estiver cursando o pré-vestibular, ensino técnico ou superior, e não tiver condições financeiras para arcar com os estudos, a pensão deve vigorar até 24 anos.

Muitas mães acabam arcando sozinhas com a sobrevivência dos filhos e, mesmo as que pedem, na Justiça, a pensão alimentícia, nem sempre a recebem. No Distrito Federal, por exemplo, que tem a maior renda per capita do país, 5% dos pais não pagaram pensão alimentícia em 2021, e 9 mil foram detidos por essa razão, nos últimos cinco anos (Metrópoles, matéria de Jonatas Martins, em 20 de agosto de 2023).

Tudo isso ocorre no mesmo país que discute frequente e apaixonadamente a criminalização da mulher por aborto e onde homens públicos e comuns defendem mais penalização para as mulheres em casos de aborto.

Há a questão afetiva crucial da rejeição, que pode acompanhar as pessoas pela vida afora, afetando outras relações.

Também não é menos difícil para as mães explicarem aos filhos a ausência de seus pais, mesmo quando há registro e o abandono foi posterior.

Ive, técnica de enfermagem, conta que sua filha quando pequena começou a perguntar onde estava seu pai e, aos 12 anos, “tem ansiedade e fala que não importa quem ele seja, quer conhecê-lo”. Deborah Moss, neuropsicóloga e mestre em psicologia do desenvolvimento humano pela USP, explica:

“Antes, a criança ainda se vê como um ser simbiótico à mãe. Na medida em que ela vai crescendo, consegue separar as coisas, com o surgimento da linguagem e das interações sociais. (…) Acredito que por volta dos três ou quatro aos de idade fica mais exacerbada a percepção de que não há um pai presente, mas depende muito da vivência”.

A especialista considera que é preciso esperar que a criança introduza o assunto, no tempo dela. E não se esquivar, mas dar explicação condizente com a idade. Para Marina Vasconcellos. psicóloga e especialista em psicodrama terapêutico pelo Instituto Sedes Sapientiae, “não convém falar ainda na infância, porque isso atrapalha demais a vida da criança, ela começa a se associar ao pai ausente e se perguntar se isso foi culpa dela”. Mas à medida em que a criança cresce, as perguntas ficarão mais insistentes e objetivas e a mãe terá de conversar sobre o assunto, com o devido cuidado (matéria de Jacqueline Elise, da Universa, em 23 de abril de 2019).

As redes sociais estão repletas de depoimentos dolorosos de filhos não reconhecidos ou de pais ausentes.

O fato é que sofrem o filho e a mãe, que precisam enfrentar uma situação sempre com muitas interferências externas de parentes, amigos de escola, conhecidos. São inevitáveis o trauma e a necessidade de lidar com ele, por vezes, durante toda a vida da pessoa.

Viviane Oliveira, cuja mãe foi abandonada pelo pai quando engravidou, passou por muitas dificuldades até formar-se em jornalismo.

Acreditando que é preciso falar sobre esse problema e como ele afeta o curso de muitas vidas, a jornalista criou uma página no Instagram para compartilhar sua história, que evoluiu para o podcast “Filhos sem Pais” (matéria de Bruno Lucca, citada acima).

Além disso há as questões objetivas de sustentação, como a falta ou insuficiência da pensão alimentícia, que acabam recaindo apenas sobre a mulher, a mãe e, muitas vezes, sobre o próprio filho, obrigado a trabalhar muito cedo, prejudicando os estudos e possibilidades de vida.

São consequências que se desdobram ao longo da vida, como, por exemplo, o filho ou filha não ter direito à herança do pai que faleceu sem reconhecer a paternidade.

A Lei 14.138 de 2021 permite a realização de exames de DNA em parentes consanguíneos para comprovar paternidade, tanto quando o suposto pai biológico estiver morto como quando o suposto pai biológico não tiver paradeiro conhecido, sempre às expensas do autor da ação.

A recusa do suposto pai, em vida, em fazer o exame de DNA, implica reconhecimento de paternidade, já no caso de outros parentes se recusarem a fazer o exame pode-se esperar controvérsias jurídicas.

Para eventual acesso à herança, no caso de falecimento do pai biológico sem reconhecimento do filho, é preciso entrar com uma ação de investigação de paternidade post mortem para fazer prova da condição de herdeiro. Se comprovado o parentesco, o nome do pai biológico será incluído na certidão de nascimento do filho que, só então, poderá fazer jus à sua parte da herança.

Em São Paulo, existe o programa Encontre seu Pai Aqui, para que pessoas sem o reconhecimento e averbação do nome do pai no registro civil possam consegui-lo, de forma extrajudicial e gratuita. O programa é iniciativa do Ministério Púbico de São Paulo em parceria com o Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo (IMESC).

Funciona assim: a pessoa interessada procura qualquer unidade do Poupa Tempo ou do Centro de Integração da Cidadania no Estado de São Paulo, preenche uma ficha e indica o suposto pai, com os dados que possuir. O solicitante pode ser o filho ou filha com 18 anos ou mais ou a mãe ou responsável legal quando o filho ou filha for menor de 18 anos ou civilmente incapaz. A promotoria recebe a informação e a partir daí o Ministério Público começa uma investigação para chegar ao paradeiro do suposto pai.

Ao ser localizado, o suposto pai é convocado a comparecer a Promotoria e ser ouvido. Caso esteja em outra localidade, é solicitada uma carta precatória para que a oitiva seja feita onde ele estiver. Caso concorde com a paternidade a ele atribuída, é feita a requisição de averbação no registro de nascimento do filho. E o interessado recebe a certidão de nascimento atualizada. Caso não concorde, é solicitado exame de DNA para verificação da paternidade e, se comprovada, segue a averbação no registro de nascimento do filho. O IMESC faz um mutirão de exames para o reconhecimento de paternidade por mês. De fato, um trabalho muito meritório do Estado.

O lado sombrio das estatísticas e da sociedade é o fato de pessoas precisarem pedir a comprovação de sua filiação. São muitas as consequências subjetivas e objetivas que afetam as pessoas que não têm o nome de seu pai no registro civil ou cujo pai se nega a contribuir para sua sobrevivência, como se nascidos vivos não fossem, como se tivessem sido abortados por eles.

 

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da IstoÉ