Cris Kerr e o desafio de transformar inclusão em prática corporativa

A professora e autora traduz diversidade em indicadores e resultados para acelerar inclusão no ambiente corporativo

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Cris Kerr, fundadora da CKZ Diversidade e idealizadora do Super Fórum Diversidade e Inclusão Foto: Divulgação

Cris Kerr construiu uma carreira dedicada a inserir a pauta da diversidade e inclusão no centro da estratégia corporativa brasileira. À frente da CKZ Diversidade, a executiva criou o evento Super Fórum Diversidade e Inclusão, iniciativa que reúne executivos para discutir práticas reais de transformação. A executiva também é autora de dois livros, Viés Inconsciente e Cultura Organizacional Livre de Assédio, além de ter sido professora em instituições como Fundação Dom Cabral e FGV.

Sua trajetória combina experiência em grandes multinacionais, atuação em fóruns de debate e um olhar pragmático para resultados. “Diversidade e inclusão são o certo a fazer, mas também geram impacto financeiro. Quanto mais felizes as pessoas estão na organização, maior é a entrega delas. Esse é o convencimento que falta para parte da alta liderança”, afirma.

A executiva construiu os primeiros anos de carreira em setores dominados por homens. Trabalhou em empresas como a holandesa Hunter Douglas e a americana Advanstar Communication, de telecomunicações. Ali, percebeu as barreiras invisíveis que limitavam a ascensão feminina. “Olhava para cima e não via nenhuma mulher. Só tinha uma coordenadora, e todos os cargos de gerência, diretoria e vice-presidência eram ocupados por homens. O cérebro acredita que não é para você quando você não se vê representada”, relembra.

No setor metroferroviário, chegou a diretoria em um ambiente com 95% de homens, e enfrentou assédio e piadas constantes. “Era a única diretora. Havia um clima de brincadeiras inadequadas e de assédio generalizado. Chegou um momento em que pensei: não dá mais, quero fazer alguma coisa para transformar esse cenário.”

A maternidade como ponto de ruptura

Virar mãe também marcou sua decisão de empreender. Ao comunicar sua gravidez ao dono da empresa da qual atuava, recebeu como resposta um palavrão. “Parecia que eu estava anunciando uma doença. Se eu, em uma posição de liderança, enfrentei isso, imagine as outras mulheres”, pondera.

Esse episódio se somou à percepção de que o ambiente corporativo não acolhia mães, situação que acontece em grande parte das empresas. Segundo pesquisa da plataforma That Works For Me, 57% das mulheres deixam sua organização em até dois anos após a licença-maternidade. A chegada da filha Beatriz reforçou seu propósito. “Queria transformar o mundo corporativo para que ela sofresse menos do que eu sofri. Esse foi um dos meus maiores motivadores.”

Foi nesse contexto que Cris decidiu fundar a CKZ Diversidade, consultoria voltada a apoiar empresas na criação de políticas inclusivas. O primeiro movimento foi organizar o Fórum Mulheres em Destaque, ainda em 2010. A iniciativa logo ganhou corpo, mas revelou uma limitação: a ausência de homens no debate. “Muitos achavam que o tema não tinha nada a ver com eles. Entendi que precisava mudar a estratégia. Diversidade não pode ser uma conversa só entre mulheres”, afirma.

Assim nasceu o Super Fórum Diversidade e Inclusão, que hoje reúne lideranças de diferentes setores e inclui estratégias para trazer homens para a discussão, como a oferta de inscrições gratuitas para executivos. O evento está em sua 14ª edição e conta com a presença de conhecidos nomes do mercado, como Luiza Helena Trajano, Presidente do Conselho Administrativo da Magalu, e Alexandre Kiyahora, Head de Diversidade, Equidade e Inclusão na B3.

Programas de impacto

Kerr insiste que diversidade só avança quando deixa de ser pauta exclusiva do RH e entra no planejamento estratégico das empresas, com metas e indicadores claros. “Naturalmente, as lideranças contratam pessoas parecidas com elas. Por isso, se não houver intencionalidade e cobrança, nada muda. Diversidade performática, ter apenas uma mulher ou um profissional negro na equipe, não resolve.”

Entre os programas de maior impacto estão a mentoria cruzada, em que executivos homens patrocinam carreiras de mulheres, e o coaching em grupo, voltado a fortalecer o posicionamento de profissionais femininas. “A mulher entrega, entrega, entrega, mas muitas vezes não fala o que quer. Já os homens dizem: ‘Quero ser gerente, quero ser diretor’. Esse posicionamento faz diferença.” Ela também alerta para o perfeccionismo feminino como barreira. “Homens não chegam 100% preparados, mas se arriscam. Mulheres com 90% das competências olham para os 10% que faltam. Precisamos mudar esse padrão.”

Novas frentes: etarismo e vieses da inteligência artificial

Nos últimos anos, Cris ampliou sua atuação para temas emergentes. O combate ao etarismo é um deles. “De cada três pessoas com mais de 50 anos, duas já sofreram preconceito. Ainda existem empresas que determinam aposentadoria compulsória aos 62 ou 65 anos. Isso é etarismo”, reconhece.

Outro foco é a crítica aos vieses da inteligência artificial, que tendem a reproduzir desigualdades de gênero e raça. Pesquisas já mostraram, por exemplo, que sistemas de IA sugerem adjetivos diferentes para mulheres em cartas de apresentação e valores menores em pedidos de aumento salarial. Para Cris, isso acontece porque o setor de tecnologia ainda é formado majoritariamente por homens brancos. “Enquanto não tivermos diversidade na TI, vamos replicar injustiças”, afirma.

Para Cris, áreas como tecnologia e ciências exatas ainda carregam forte marca masculina, o que afasta muitas meninas desde cedo. “Quando minha filha participava de competições de matemática, a sala era quase toda masculina. O cérebro dela pensava: ‘isso não é para mim’. Precisamos trabalhar desde a escola para que meninas acreditem que podem ocupar esses espaços”, afirma.

Interseccionalidade como horizonte

A executiva ressalta que discutir gênero sem considerar outros marcadores sociais é limitar o alcance da pauta. O conceito de interseccionalidade — criado pela jurista Kimberlé Crenshaw — descreve justamente como diferentes formas de discriminação se somam, criando barreiras adicionais. Cris lembra que, no Brasil, as poucas mulheres que chegaram a cargos de diretoria ou vice-presidência são majoritariamente brancas. “Precisamos fazer um esforço consciente para incluir mulheres negras, lésbicas, com deficiência. Quanto mais intersecções, mais barreiras existem. A diversidade precisa ser plena”, afirma.

A experiência de Cris Kerr evidencia como trajetórias individuais se entrelaçam com desafios estruturais do mercado de trabalho. Ao lado de fóruns e consultorias, ela também leva o debate para sala de aula e para publicações acadêmicas e de mercado, reforçando a ideia de que diversidade não é pauta periférica, mas parte da governança e da estratégia das empresas. “Não adianta só ter diversidade, é preciso criar pertencimento. E isso exige metas, intencionalidade e liderança engajada”, resume.