Uma das narrativas favoritas do cinema na cultura ocidental é a distopia do fim do mundo. Tal possibilidade assombra a sociedade contemporânea como um fantasma. Um fantasma pautado na construção de um planeta que caminha para a própria destruição, descolado da percepção de povos racializados sobre o contexto contemporâneo.
Dentro do Afrofuturismo, um dos temas que pesquiso, existe uma percepção de que o mundo tal como nós, pessoas negras descendentes do continente africano, conhecíamos antes da colonização, acabou. E tudo que vivemos após o período de escravização é uma história pós-apocalíptica. Através da trajetória de três mulheres negras vou contar um pouco sobre como temos adiado o fim do mundo, parafraseando o mestre Ailton Krenak.
Ná Agontimé
Uma das mulheres que materializa a experiência de sobrevivência afro-brasileira pós-apocalíptica é Ná Agontimé (ou Maria Jesuína, como foi rebatizada no Brasil). Nascida no reino do Daomé no século XVIII, Agontimé, uma das oito esposas do rei Agonglo, foi mãe do rei Guezo, um dos últimos do império do Daomé (atual Benin). Em um golpe de estado, dado pelo primogênito de seu marido, Agontimé é vendida como escravizada para o Brasil e funda no Maranhão o templo Querebentã de Zomadônu, conhecido como Casa das Minas, criando assim o culto de tradição Ewe-Fon no Brasil. Ná Agontimé recriou um pedaço do Daomé no Brasil, dando continuidade à sua cultura, modos de vida e ancestralidade. O culto durou de 1840 a 2015, quando faleceu a última vodunsi iniciada na Casa das Minas. Atualmente o terreiro celebra as festividades da cultura popular do Maranhão e é um importante espaço de manutenção da memória do povo negro.
Tia Marcelina
Na cidade de Maceió, atual estado de Alagoas, a ialorixá Tia Marcelina, uma mulher africana de tradição nagô, era reconhecida como uma das fundadoras do candomblé na região. Ao curar e acolher muitas pessoas, Tia Marcelina tornou-se uma personagem mítica após o evento conhecido como Quebra de Xangô. Em 2 de fevereiro de 1912, seu terreiro foi invadido, assim como as outras casas de candomblé da cidade e municípios vizinhos, em uma ação orquestrada politicamente para derrubar o governador do estado na época, que era constantemente associado à ialorixá, sendo acusado de usar “magia negra” para conquistar poder.
Os homens que invadiram seu terreiro atearam fogo em seus objetos de culto, destruíram a estrutura e espancaram Tia Marcelina. Conta-se que enquanto era agredida ela dizia “bate, moleque, quebra braço, quebra perna, lasca cabeça, tira sangue, mas não tira saber”. Durante muitos anos, as casas de culto de matriz africana cultuavam seu sagrado sem atabaques, o que ficou conhecido como Xangô Rezado Baixo. Em 2012, o governador do estado pediu oficialmente perdão pela perseguição que os terreiros sofreram e a memória de Tia Marcelina tem sido celebrada em festivais de cultura popular, como o Xangô Rezado Alto promovido pelo poder público, que mantém viva a tradição no estado.
Tia Carmem do Xibuca
Em 1878 nascia, na Bahia, Tia Carmem do Xibuca, que viria a ser uma das responsáveis por fundar a tradição do samba no Rio de Janeiro. Moradora da região conhecida como Pequena África, no Centro do Rio, Tia Carmem teve 22 filhos e era conhecida por ser quituteira de mão cheia, protetora das crianças, organizadora de sambas no quintal de sua casa e apoiadora de ranchos carnavalescos, que futuramente se tornariam as escolas de samba. Amiga e irmã de santo de Tia Ciata e de outras tias do samba, a história de Tia Carmem do Xibuca sintetiza a importância de todas elas para a formação cultural do Rio de Janeiro.
A figura das tias juntava desde o cuidado espiritual, a garantia de trabalho e renda, cuidados de saúde para a população negra que não tinha acesso à medicina formal, até a proteção da integridade física por serem respeitadas inclusive pela polícia e autoridades. Sua atuação também era política: as tias do samba eram reconhecidas como legítimas representantes das pessoas negras e amplamente respeitadas socialmente. Suas casas forneciam acolhimento, formação ética e senso de comunidade para aqueles que foram arrancados de suas terras de origem. Foi nos quintais das tias, como da Tia Carmem, que o samba surgiu, protegido do Estado que criminalizava a prática do ritmo que, anos depois, acabaria se tornando a principal marca identitária do país.
Ná Agontimé, Tia Marcelina e Tia Carmem do Xibuca foram mulheres que viveram em diferentes tempos e espaços, mas compartilham entre si um aspecto fundamental em suas trajetórias como grandes ancestrais: a capacidade de preservar a memória sobre quem são e de plantar sementes da sua cultura. Seus fazeres e saberes não se resumem à sobrevivência. A inteligência para dialogar com uma sociedade racista, a ousadia de manter sua forma comunitária de viver, a alegria como ferramenta fundamental para se manter vivo sem esmorecer foram legados deixados por elas, mulheres do fim do mundo, como cantou Elza Soares. Apesar de toda sorte de obstáculos e violências possíveis, em contextos muito mais desfavoráveis do que hoje em dia, foram mulheres negras com vontade de adiar o fim que construíram múltiplas possibilidades de existência para nós, suas gerações futuras. Como disse Tia Marcelina, a violência pode nos ferir de muitas formas, mas nunca haverá de nos fazer esquecer nosso saber sobre quem somos e porquê estamos aqui.