Como uma mulher negra e de origem indígena, demorei um tempo para compreender o real significado do dia 13 de maio. Durante toda minha vida estudantil, infanto-juvenil, aprendi a comemorar esta data como o “fim” da escravidão de milhares de pessoas com características fenotípicas semelhantes à minha. O fato é que a escravidão não terminou com o decreto da Lei Áurea assinado pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888.

Ao longo do tempo, a escravidão adquiriu outras formas de manutenção e narrativas sobre um passado longínquo. Essa narrativa insiste em perdurar, invisibilizando e silenciando pessoas por mais de um século, violando direitos e produzindo desigualdades.

É necessário implodir os alicerces da escravidão, isso implica ir além da criação de marcos legais. A história é um processo de construção sociocultural que está arraigado no imaginário da sociedade contemporânea. Por outro lado, movimentos empenhados em dar visibilidade e quebrar as correntes invisíveis da herança escravocrata ganham força e evidência.

Foram anos sem refletir profundamente sobre o trabalho escravo e suas estruturas produtoras de desigualdades que perduram nas mais diversas formas em nosso meio, sobretudo na Amazônia brasileira.

A aproximação com a escravidão sempre foi uma presença latente em minha vida, configurada socialmente pela minha cor de pele, pelos desafios sociais que percorreram minha infância, adolescência, juventude até me tornar adulta. A escravidão na vida de uma pessoa negra e pobre é “uma viva e permanente ameaça”. Hoje, consciente da estrutura social em que me insiro, tenho clareza do papel que cada brasileiro deve assumir diante das injustiças produzidas pela manutenção do trabalho escravo.

Por meio da Rede Transdisciplinar da Amazônia (RETA), da qual faço parte, caminho junto a outras pessoas, que assim como eu se organizam em redes e organizações em diversas frentes que possibilitem (re)estruturar o alicerce social, extirpando a herança escravocrata e colonial neste longo caminho de construção do nosso país, o Brasil.

O trabalho escravo ou a escravidão ganham termos próprios que o designam no contexto histórico no século 21. Trabalho análogo à escravidão contemporânea é o termo usado atualmente, o que não exime a escravidão na constituição das desigualdades e exclusões por meio de atividades predatórias e ilegais. Seus tentáculos submetem grupos vulneráveis a violações como a migração forçada, trabalho degradante nas frentes de expansão colonial da fronteira agropecuária, trabalho infantil e exploração sexual de mulheres e crianças. Sua complexidade vai além, na medida em que moldam as demandas produtivas para atender o mercado externo e interno, sendo invisibilizado ou disfarçado por relações abusivas e degradantes com a finalidade de produzir riquezas para grupos sociais restritos, corporações e empresas de responsabilidade ilimitada nacionais e internacionais.

Do ponto de vista da geopolítica, as atividades utilitárias da mão de obra escrava se moldam de acordo com demandas de mercado externo e interno dos países onde o trabalho escravo ocorre. No Brasil podemos destacar essa violação de direito ocorrendo em várias regiões e atividades produtivas voltadas para atender demandas dos mais diversos segmentos econômicos, como: desmatamento, pastos para pecuária e produção de couro, produção agrícola de monoculturas como o café, a cana e o dendê, em vinícolas, no extrativismo vegetal, nas carvoarias, na indústria têxtil, na construção civil, em casas de famílias herdeiras de práticas escravocratas, no garimpo, dentre outras atividades, assim como a exploração do trabalho infantil e tráfico de pessoas são realidades do Brasil contemporâneo que sonha em ser um país de primeiro mundo. No entanto, o desenvolvimento do país não deve ocorrer em detrimento da mão de obra escrava de seu povo.

Em ações da RETA relacionados ao trabalho escravo, partimos da premissa de que “a escravidão contemporânea na Amazônia começa quando a natureza, a vida e os direitos são violados”. Segundo o auditor fiscal do Ministério do Trabalho (MT), Magno Riga, “o trabalho escravo na Amazônia ocidental se dá na forma mais primitiva do capital”. Ou seja, está baseada na apropriação privada de territórios de uso comum, bens ambientais e públicos por uma minoria de pessoas privilegiadas. Indo mais além, pode-se dizer que atualmente a manutenção dessa estrutura de escravidão e violência histórica se dá por meio do neoextravismo.

No sul do estado do Amazonas, esses processos relativizam o tempo, pois em muitas comunidades locais tradicionais e aldeias indígenas temos a impressão de estarmos em tempos distintos, onde passado, presente e futuro se cruzam. Me refiro ao passado destacando a forma como as populações tradicionais e indígenas conservam suas tradições e modos de vida ancestrais e autonomia suficiente na ausência do estado. Quanto ao presente, as violações se impõem no território, cooptando pessoas para o trabalho degradante, ignorando as leis e os direitos das populações tradicionais e povos indígenas ali existentes. Já o futuro parece não tão distante, apresenta-se pragmático com a devastação da biodiversidade, as mudanças climáticas em evidência, requerendo medidas urgentes.

Fronteiras tênues entre real e realidades da Amazônia Ocidental, na qual as violações relacionadas ao trabalho escravo estão a todo curso nas frentes de expansão do agronegócio e mercado de terra ilegal, abertura de ramais, áreas para pasto, produção de soja e garimpo, sobretudo na região fronteiriça entre os estados de Mato Grosso, Rondônia, Pará e Acre. Processos de crescimento e expansão das fronteiras agrícolas, rodovias e vicinais irradiam em direção ao interior da Amazônia Ocidental, altamente conservada por populações tradicionais e povos indígenas.
É nesta configuração de produção de desigualdade e violações de direitos que no sul do Amazonas as práticas colonialistas perduram e o trabalho escravo contemporâneo é invisibilizado, abrindo caminho para o “desenvolvimento” por meio de processos violentos e de expropriação da liberdade e da terra (inclui mananciais).
Os dados e evidências sobre o trabalho escravo no Amazonas são incipientes, o que dificulta o combate, resgate e mitigação de trabalhadores em situação de trabalho análogo à escravidão. Em Manicoré recentemente (entre os dias 20 e 25 de abril), foram resgatados 50 trabalhadores em situação de trabalho degradante, privados de sua liberdade, isolados geograficamente, sem acesso a atendimento médico, submetidos à jornada exaustiva de trabalho na região do rio Manicoré, sul do Amazonas.
Dentre os resgatados estavam seis crianças, um adolescente de 16 anos e cinco mulheres (uma grávida). Os mesmos encontravam-se em uma área de aproximadamente quatro mil hectares desmatada. O resgate se deu por meio de uma equipe móvel do Ministério do Trabalho que libertou os trabalhadores, e os enviou para o serviço de assistência social CREAS de Manicoré, e em seguida para seus lugares de origem: Novo Aripuanã, Apuí, Rondônia e Santo Antônio do Matupi.

Outro caso referente ao trabalho escravo ocorreu em uma área de garimpo em Maués, onde 52 trabalhadores foram resgatados em situação de servidão por dívida e condições degradantes de trabalho. Os dois casos, Manicoré e Maués, ocorreram na mesma semana, o que nos alerta para um possível crescimento de ocorrências desses ilícitos no Amazonas.

O problema se torna ainda mais complexo com a ineficiência e pouca efetividade das políticas públicas voltadas para o atendimento dos grupos resgatados. A precariedade na atuação dos órgãos de fiscalização, como a viabilidade das operações, baixo contingente de agentes para as operações, indisponibilidade de equipamentos tecnológicos, precariedade logística e apoio em campo durante a deflagração da missão, coloca a própria equipe móvel em situação de risco.

Os trabalhadores resgatados parecem não compreender de imediato sua condição de submissão ao trabalho degradante e situação de escravizados. Após o aliciamento, os mesmos são levados para áreas de exploração, com alojamentos precários, sem acesso a saneamento básico e água potável. A vulnerabilidade socioeconômica desses trabalhadores leva-os a aceitarem esses serviços em áreas inóspitas, sem nenhuma garantia trabalhista e de assistência. É comum trabalhadores resgatados reincidirem no trabalho escravo.

Os problemas que condenam trabalhadores e trabalhadoras às fileiras do tráfico de pessoas e do trabalho escravo vêm se intensificando nos últimos anos. A fome voltou a crescer. As reformas trabalhistas retiraram direitos e a informalidade se expandiu, sob o disfarce do empreendedorismo. A concentração da terra nas mãos de uns poucos é escandalosa, enquanto os investimentos na agricultura familiar são ínfimos. O estímulo às invasões dos territórios de comunidades é criminoso. A devastação ambiental atingiu patamares intoleráveis enquanto os conflitos no campo se aprofundaram. Os resgates em atividades urbanas e nos núcleos domésticos escancararam que a exploração está em toda parte.

São evidências de como a política e violações de direitos se intersectam em algum ponto no processo desenvolvimentista, constituindo-se por meio de complexas engrenagens que imbricam projetos de leis, incentivos a grandes empreendimentos e produção de commodities.

Outro agravante relacionado a esta prática, é das comunidades locais e aldeias que sofrem com ameaças e invasões de suas áreas de uso comum pelas frentes de devastação dos recursos naturais e os serviços ecossistêmicos produzidos pela biodiversidade. Ao se colocarem como defensores dos direitos humanos e da natureza, na luta pelo território e contra os ilícitos ambientais, lideranças comunitárias ficam expostas à ameaças que partem dos responsáveis, encarregados de gerenciar as atividades de devastação no sul do Amazonas. No Brasil o índice de defensores de direitos humanos mortos chegou a 169 entre os anos de 2019 e 2022, sendo a maioria defensores de causas ambientais e indígenas.

Quanto a mortes e conflitos no campo, segundo a CPT (2022), ouve um aumento assustador no número de assassinatos (+30,55%), ameaças de morte (+43,05%) e tentativas de assassinato (+272,72%) em relação aos levantados em 2021. Em 2022, foram registrados 47 assassinatos em situações de conflito no campo, 206 ameaças de morte e 123 tentativas de assassinatos, o maior registro deste tipo de violência em todo o século 21.

Os dados acima apontam para a importância da política de combate e erradicação do trabalho escravo ser efetivada. No Amazonas, a intersetorialidade entre os órgãos de fiscalização, bem como os responsáveis pela prevenção, erradicação, repressão, reinserção das vítimas e monitoramento dos trabalhadores resgatados é premente, bem como a urgência de reestruturação da Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo no Amazonas (COETRAE/AM).

Esses fatos são reais, devem tornar-se parte da continuidade da história sobre os alicerces da escravidão, ou permanecerão esquecidos logo após os dias 13 de maio dos anos vindouros.

O fato é que a escravidão deve ser combatida por todos, escravizados, não escravizados e os que não sabem o que isso significa, por meio de medidas e mecanismos educacionais, de comunicação de massa e para além da data de 13 de maio. Precisamos retomar na narrativa histórica o nosso papel cidadão e seguir a orientação de ações concretas e conscientes no combate à escravidão. Sermos criativos na construção de projetos alternativos para uma sociedade justa, igualitária, tolerante à diversidade racial, cultural e distintas visões de mundo que compõem a riqueza material e imaterial do nosso país, o Brasil.

Neste 13 de maio e nos demais dias, eu gostaria que os brasileiros fizessem uma busca na história, resgatassem o sentido do que foi/é a escravidão. Que concretizem em seus pensamentos e ações, no dia a dia, atos reflexivos do que é carregar essa herança maldita que nos impede de sermos livres na diversidade. São pequenas iniciativas que podem ganhar proporções decoloniais na reconstrução da história, sem as mazelas da escravidão. Reescrever a história em nossos lugares de vida, em nosso país, usufruindo da liberdade, sem que haja submissões e fugas devido à fome, à desigualdade, ao desemprego, o preconceito e à violência.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.