As histórias das mulheres livres dos anos 80 me fascinavam. Nasci numa época em que não havia internet, as pessoas não se comunicavam por whatsapp e tudo o que chegava até nós vinha através da televisão, jornais e revistas. Meu pai tinha muitas delas, as revistas, e por meio delas eu conhecia, e me impressionava, com um mundo que se abria muito além do perímetro da cidade de Estrela, onde morava no interior do Rio Grande do Sul.
A primeira vez que li sobre Angela Diniz foi numa revista mais antiga, do final dos anos 70, estampada com a face deslumbrante da pantera, e o título que mencionava um crime brutal. Não lembro detalhes do que li, mas guardo a sensação de ficar muito assustada e pela primeira vez pensar que ser mulher poderia ser muito perigoso, dentro de uma estrutura social regida pelas leis dos homens.
Foi no meio da pandemia que essas memórias voltaram para mim. Com o lançamento do podcast “Praia Dos Ossos”, realizado brilhantemente pela Rádio Novelo, a história de Angela voltou com força para meu pensamento. Foi um sucesso estrondoso: ouvi todos os episódios, busquei as pesquisas feitas pelas jornalistas e fui me inteirando de tudo que conseguia encontrar sobre a história.
Busquei entrevistas sobre o crime e uma das coisas que mais me chocou foi a sua repercussão na sociedade da época. Pessoas que apontavam Angela mais como culpada do que vítima, o machismo estrutural gritante defendido por homens e pasmem, mulheres, que insistiam em julgar a sua figura de forma estereotipada, quase como merecedora do crime cometido contra ela.
Fiquei arrasada ao me deparar com essa realidade e na minha cabeça de artista pensava, dia após dia, o quanto essa história precisava ser contada pois refletia exatamente as entranhas de um sistema que está mais contra as mulheres do que preocupado em garantir a nossa liberdade de vida.
Procurei saber se já havia a produção de algum filme e vi que o cineasta Hugo Prata estava desenvolvendo um projeto sobre o tema. Torci para que fosse realizado o quanto antes, pois era urgente falar sobre esse caso e de alguma forma reescrever essa narrativa histórica que mais culpabiliza a vítima do que a defende, como devia ser.
Em junho de 2022 recebo uma ligação de consulta para um trabalho. A produtora de casting Deborah Carvalho me enviou um roteiro cujo título era: Angela. Fiquei em silêncio, fiquei muitos dias em silêncio digerindo a informação e pensando que o que mais queria naquele momento era contar aquele drama junto com eles. Queria ajudar a reescrever essa história e falar por todas nós mulheres, que ainda hoje somos vítimas de um sistema machista e preconceituoso, temos que pensar 2 ou 3 vezes antes de colocar determinada roupa, com medo de andar sozinhas e muitas vezes sem nossa autoridade reconhecida em situações corriqueiras, simplesmente por sermos mulheres – e para muitas isso ainda pode custar a própria vida.
Legítima defesa da honra foi o argumento que absolveu Doca Street naquele momento, uma tese que já tinha sido expurgada da legislação brasileira em 1830, no código criminal do Império. Uma tese que mesmo assim foi usada e autorizada amplamente como argumento de defesa até agosto de 2023, data em que o STF a julgou inconstitucional nos casos de crimes de feminicídio – uma prática medieval que subjuga a mulher como propriedade e objeto de controle de uma sociedade carregada de misoginia.
Ontem falando sobre esta história com um amigo chegamos à seguinte constatação: na primeira vez em que Angela se separou de um homem, ela perdeu os seus filhos, e quando mandou um homem embora, acabou perdendo a vida.
Angela chega aos cinemas dia 7 de setembro.
“Quem ama não mata”.
Lembro que quando criança, muito pequena, ficava horrorizada com uma história que tinha acontecido antes de eu nascer. Sempre fui muito curiosa e a curiosidade pode te levar longe, mas também te colocar diante de informações e situações que muitas vezes podem até ser arriscadas.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.
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