– Mamãe, a Larica vai morrer?
– Não sei, minha filha, não sei….
Esta foi a resposta que dei para minha filha de nove anos quando ela perguntou sobre a nossa gata de 15 anos, internada em estado grave, logo após eu ter sido informada pelo corpo clínico veterinário do hospital que ela dificilmente conseguiria “sair dessa”… As opções naquele exato momento eram: tratamento paliativo, eutanásia ou… um milagre.
Tratamento paliativo e eutanásia, a meu ver, significavam quase a mesma coisa – assim o milagre se estabeleceu, para mim, como a única interpretação plausível, quando a nefrologista comentou, por uma chamada de vídeo:
– Biologia não é matemática, pode ser que ela melhore mas é muito difícil, pra não dizer impossível, mas biologia, não é igual a 1 + 1.
Dito isso, concluí que a explicação normal a ser dada por uma boa mãe seria uma resposta mais exata, objetiva. Talvez o esperado fosse contar a ela, de uma forma fofa, como viramos estrelas, e não ler as primeiras páginas de “O Livro Tibetano do Viver e Morrer”, numa tentativa de explicar para mim mesma aquele misterioso processo através da filosofia budista. Deveria ter aproveitado a desculpa das estrelas para blindá-la de alguma forma, impedindo-a de sentir a mesma impotência que eu vivia e assim pudesse libertá-la de toda a angústia – mas não foi o que fiz.
Pois bem, talvez tenha falhado como mãe, expondo minha vulnerabilidade quase de maneira infantil, e ainda fracassado uma segunda vez como adulta, ao não me tornar uma fortaleza humana e ser capaz de agir de forma prática e racional perante a situação, mas…. ganhei um milagre…! Larica está viva!
A verdade é que não achei justo com ela, a gata, tomarmos qualquer decisão de forma abrupta. Larica está comigo há 15 anos e, ao longo desse tempo, ganhou o status de gatinha highlander quando perdeu o rabo, ao ser atropelada, o que imediatamente passou a justificar seu nome, consolidando uma lenda urbana de mau gosto sobre uma de suas sete vidas: cuidado com ela, comeu o próprio rabo.
Tenho um amor gigantesco pela Larica e naturalmente queremos que ela fique bem. Mas naquele momento de impasse considerei que o melhor seria dar para nossa gata o seu próprio tempo, quando pudesse compreender o que o seu instinto animal decidiria. E… para surpresa da maior parte das pessoas, amigos, médicos, vizinhos, a cada dia que passava Larica começava mais forte e ativa!
Aos poucos até mesmo o hospital foi compreendendo que ela é uma gata extraordinariamente sociável. Fez brotar uma paixão nos plantonistas por suas conversas intermináveis, sempre regadas a uma dose de mau humor constante, caso alguém passasse um pouco do ponto. Larica é ótima em colocar limites.
No período de internação no hospital frequentamos diariamente o jardim, que estava sempre vazio, passando as tardes tomando banho de sol e ouvindo Rita Lee – cenário que nos fazia, regularmente, extrapolar em mais de 45 minutos o limite dos 15 que nos eram destinados.
No pior dia, acabei avisando à turma de amigos que conviveu com Larica durante esses 15 anos o que estava acontecendo. E a partir daquela data ela passou também a ser a gata mais popular do hospital. Com seu mau humor sempre conquistou a todos, nunca fez muito esforço, a gata sem rabo tem o seu charme intrínseco.
Fizemos um encontro dos amigos da Larica no jardim e, para a surpresa de todos, não paravam de chegar humanos! Além disso, ela também começou a receber visitas dos familiares dos outros gatos internados, o que gerou uma nova comoção entre visitantes e equipe médica.
Agora seguimos as duas em casa – eu cuidando atenta e fazendo o tratamento possível, afinal trata-se de uma gatinha renal idosa. Entendi que o que me cabe é dar-lhe conforto para que viva o tempo que escolher.
Quanto à minha filha, continuo sendo incapaz de dizer que sei de tudo, porque realmente não sei e, por isso, sigo aberta a descobrirmos juntas algumas respostas – e juntas continuarmos acreditando em milagres.
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