O assassinato da líder indígena Maria de Fátima Muniz, conhecida como Nega Pataxó, no dia 21 de janeiro passado, revela uma onda crescente de violência contra os povos originários no sul da Bahia. A majé (líder espiritual) foi morta durante um conflito de terra na região. De acordo com informações do Ministério dos Povos Indígenas, cerca de 200 ruralistas locais convocaram fazendeiros e comerciantes para retomar, sem decisão judicial, a posse da Fazenda Inhuma, que estava ocupada pelos indígenas.

A mobilização dos ruralistas foi feita por um aplicativo de mensagens, que já reune 200 pessoas e hoje tem atuação nacional. Dois fazendeiros foram presos, no dia seguinte ao assassinato da líder indígena, como suspeitos de tê-la matado a tiro. Maria de Fátima Muniz era mãe de três filhos e avó de cinco netos. Destacou-se como uma líder espiritual dedicada, envolvendo-se ativamente nas esferas sociais e políticas, tanto dentro quanto fora de sua comunidade, colaborando com seu irmão, o cacique Nailton que sobreviveu após ser alvejado durante o mesmo conflito.

Ao longo da história, as mulheres indígenas têm desempenhado papéis fundamentais nas lutas de suas comunidades, enfrentando desafios únicos e contribuindo de maneira notável para a preservação de suas ricas culturas. Elas são as guardiãs da tradição, da terra e do amor, que nutre as sementes do amanhã. Mesmo quando a escuridão tenta sufocar a luz, as mulheres indígenas são faróis de resistência, guiando-nos em direção à alvorada de uma justiça restauradora.

 

Escalada de violência

 

Com a implementação do marco temporal e a alarmante escalada nas estatísticas de violência policial na Bahia, observa-se um crescimento significativo de homicídios entre os povos indígenas na região sul do estado.

No vasto território que abraça o Brasil, ecoa uma triste sinfonia que se ergue das terras dos povos originários, marcada pela violência que há séculos desenha cicatrizes profundas na história dessas comunidades. A terra, que antes era um santuário de diversidade cultural e ambiental, agora é testemunha de um capítulo obscuro de agressões e injustiças.

A violência contra os povos originários no Brasil não é uma narrativa recente; é uma saga secular de despojamento, desrespeito e desumanização. Os primeiros habitantes desta terra, detentores de uma riqueza cultural imensurável, são vítimas de uma violência que se manifesta de diversas formas. Mas uma crescente onda de violência paira sobre essa comunidade, constituindo uma ameaça às vidas de seus membros. 

O aumento da violência policial, das milícias rurais e do narcotráfico tem assombrado as terras indígenas no sul do estado, impactando significativamente na vida das comunidades e de suas lideranças. A violência física e simbólica caminha de mãos dadas. 

Líderes indígenas são alvo de ameaças e assassinatos, numa tentativa de silenciar as vozes que clamam por justiça e respeito. A linguagem da discriminação e do preconceito amplifica o sofrimento, perpetuando estereótipos que obscurecem a riqueza cultural desses povos.

Em um comunicado emitido pelo Mupoiba (Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia), constatou-se que, desde a sua regularização, em 2012, mais de 30 indivíduos foram vítimas de assassinato no interior da Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu. Em 2023, esse número aumentou para sete indígenas assassinados dentro da mesma área. 

Após três décadas de intensa luta pela recuperação de seu território tradicional e mais 12 anos depois da regularização, esse povo ainda não desfruta do direito fundamental à vida. A situação destaca a urgência de medidas efetivas para garantir a segurança e os direitos básicos dessas comunidades indígenas.

A usurpação de terras é uma das faces mais cruéis desse drama. A voracidade pelo desenvolvimento desenfreado, muitas vezes guiado por interesses econômicos, resulta na invasão e destruição dos territórios indígenas. Apegados à terra como extensão de sua identidade, os povos originários veem seus lares invadidos, seus rituais profanados e suas formas de vida ameaçadas.

Conforme destacado no relatório da Anistia Internacional (informe 2020/21), persiste a impunidade e a limitação do acesso à justiça, gerando sérias preocupações entre os povos originários em todo o país. Essas comunidades, frequentemente negligenciadas nas políticas públicas e em seus direitos territoriais, continuam enfrentando ameaças decorrentes da apropriação ilegal de terras para atividades como a criação de gado e expansão do agronegócio. A adoção de medidas é cada vez mais urgente, tendo em vista que a pecuária continua em expansão no país.

 

Guardiãs da terra

 

A luta das mulheres indígenas se destaca nesse cenário. Suas principais batalhas incluem a incansável defesa da preservação cultural, a proteção dos territórios ancestrais e a incessante busca pelos direitos humanos. A resistência das mulheres indígenas está intrinsecamente ligada à resiliência cultural. Apesar das adversidades, elas persistem na prática e promoção de suas tradições, costumes e línguas, mantendo viva a diversidade cultural das comunidades indígenas. É crucial reconhecer e valorizar essa resistência, proporcionando às mulheres indígenas o espaço e apoio necessários para liderar suas comunidades em direção a um futuro mais justo e equitativo. 

No cerne de suas dores, há uma chama de esperança que queima, uma esperança que se recusa a ser extinta. Essas mulheres são rios de resistência que fluem, mesmo quando as margens da intolerância tentam contê-las. Elas dançam entre as chamas da resistência, as quais queimam com a força das labaredas de uma fogueira ancestral. As cicatrizes em suas almas contam contos de um passado repleto de desafios, mas também revelam a força de espíritos que se recusaram a ser quebrados.

Cada passo dessas mulheres ressoa como um eco de ancestralidade, um chamado às raízes que penetram profundamente na terra que sempre foi seu santuário. Na teia intricada de suas vidas, entrelaçam-se as histórias de mulheres que foram silenciadas, mas que agora elevam suas vozes como canções de resistência, melodias de renovação.

No entanto, apesar da sombra que paira sobre essas comunidades, há uma resistência que pulsa. Líderes e ativistas indígenas erguem suas vozes, clamando por justiça, dignidade e preservação de suas culturas. Movimentos sociais, organizações não-governamentais e cidadãos conscientes unem-se nessa jornada, buscando criar pontes de solidariedade e compreensão.

Que possamos aprender com a sabedoria dos povos originários, honrando a terra que compartilhamos e reconhecendo a importância de preservar a riqueza de suas culturas. Somente através de um compromisso coletivo e da promoção de valores fundamentais, como respeito e igualdade, poderemos vislumbrar um futuro onde a violência contra os povos originários seja apenas uma triste lembrança de um passado superado.

Juntos, como uma sociedade global, devemos nos empenhar na construção de um mundo onde a riqueza da herança indígena seja não apenas respeitada, mas também protegida, pavimentando assim o caminho para um futuro de coexistência pacífica. O primeiro passo reside no entendimento e no respeito pelas culturas indígenas, absorvendo as lições de suas tradições, conhecimentos e práticas sustentáveis, fundamentais para a preservação do meio ambiente. A promoção da educação intercultural é essencial para erradicar estereótipos nocivos e fomentar uma compreensão mútua mais profunda.

No cenário contemporâneo, emerge o filme “Cosmovisões”, como uma iniciativa voltada para promover a compreensão e o respeito pelos povos originários. Neste documentário, Maya Pataxó Muniz, irmã de Maria de Fátima Muniz, a líder assassinada, atualmente professora com reconhecido saber no departamento de antropologia da UFBA, proporciona ao espectador reflexões aprofundadas sobre o bem-viver e o contexto social e político das mulheres indígenas no sul do estado da Bahia. 

Além de Maya Pataxó, que é uma das precursoras na fundação da educação escolar indígena na Bahia, o filme destaca a participação de Olinda Yawar Muniz, artista indígena e sobrinha de Maria de Fátima. Olinda traz à luz diversos aspectos de sua cultura, oferecendo reflexões sobre raça, cultura e meio ambiente. Lideranças femininas como Nádia Akawã, Rutian Pataxó, Glicéria Tupinambá e Maria da Glória (mãe do cacique Babau) ainda compõem o elenco do filme, que busca apoiar uma educação decolonial com objetivo de erradicar manipulações históricas e construir pontes para um futuro mais inclusivo e respeitoso.

Ao enfrentarmos a violência dirigida aos povos originários, não defendemos apenas a justiça, mas fomentamos também a diversidade cultural e a preservação de nosso planeta.

 

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.