Eu estava ali por volta dos 34 anos quando me dei conta de que era uma mulher branca. Não que eu sofresse de distúrbio de imagem ou negasse o que o reflexo do espelho mostrava. 

A questão é outra. Vivi uma vida inteira sem achar que era necessário me entender como mulher branca por um motivo bem simples: ser branca significava ser o padrão, ser o normal. E se somos o normal, por que perderíamos tempo pensando sobre isso?

Adoção fazia parte do meu planejamento familiar, juntamente com uma gestação biológica, que nunca chegou a acontecer e que, apesar de tratamentos, virou apenas história para contar.

O fato é que deixei de ser a Jussara para me tornar a “mãe do Dudu”, como sou chamada por onde passo. Mais do que isso. Em 12 de junho de 2014, me tornei mãe branca de um menino negro. E muito embora enxergasse cores e não tenha feito nenhuma restrição à cor de pele da criança que viria pela adoção, naquela época eu ainda não tinha a dimensão do real significado da interracialidade.

Ser mãe branca de um menino negro não me colocaria em um lugar de “pessoa boa”, de imunidade quanto a pensamentos e comportamentos racistas, nem tampouco me transformaria, como num passe de mágica, em uma pessoa com consciência racial.

Transcorreram alguns anos para que eu entendesse que, mais do que meu filho ser um menino negro, eu também era, e sou, uma mulher branca.

Estamos acostumados a racializar o negro, sem nos darmos conta de que nós, brancos, também somos seres racializados. E mais: do quanto carregamos de privilégio e responsabilidade por conta dessa tal cor de pele naturalizada como sendo o “normal” e o “padrão”.

Fiquei anos sem me dar conta de que o novo lugar social que passei a ocupar, depois da maternidade, iria exigir que eu entendesse o que é ser uma pessoa negra em um mundo extremamente racista, no qual não importa a formação, a cultura ou a classe social: a cor vai sempre chegar primeiro. Como disse Glória Maria em uma entrevista: nada blinda preto de racismo. Nada.

Ter consciência dessa realidade pode nos levar a dois caminhos opostos: a negação, repetindo discursos rasos, ou o aprofundamento. Somente um deles é capaz de quebrar estruturas construídas ao longo dos séculos e começar a edificar o tal mundo que queremos para as próximas gerações.

Pois o caminho escolhido foi o mergulho. 

Como costumo dizer, o processo de letramento racial e militância antirracista tem um ponto de partida, mas nunca terá uma linha de chegada. É processo. Sempre processo.

Quantas vezes me questionei sobre qual seria meu lugar de fala, se é que ele existia.

Quando saímos do conforto da bolha branca na qual nos fechamos, começamos a desconstruir algumas verdades absolutas que foram ficando impregnadas nos nossos pensamentos e de comportamentos ao longo dos anos. 

Entendemos que racismo não é problema de negro. É criação e problema de branco. 

De outro lado, aprendemos também que, apesar de termos sido acostumados durante uma vida inteira a sermos protagonistas em tudo, enquanto os negros ocupavam os lugares de menor destaque, aqui o centro do palco não é nosso. Os papéis se invertem e passamos (ou, melhor dizendo, devemos passar) ao lugar de aliados na luta. 

Isso não é pouco. É muito e é extremamente importante.

Certa vez ouvi que “preto não gosta de branco falando de racismo”. Na verdade, preto não gosta de branco surfando na onda de falar de racismo, de forma rasa, em troca de engajamento em redes sociais. Preto não gosta de branco que é antirracista de fachada, somente em datas como 21 de março, 13 de maio ou 20 de novembro. Preto não gosta de branco que ama postar quadrado preto com #blacklivesmatter ou compartilhar foto do jogador Vini Jr. nas redes sociais, mas que não fica igualmente indignado com a ausência de pessoas negras em lugar de chefia e destaque no seu lugar de trabalho, ou nos ambientes onde frequenta. Preto não gosta de branco querendo ensinar o que é racismo.

Grada Kilomba traz em seu livro “Memórias da Plantação” a evolução dos mecanismos de defesa do ego do sujeito branco no processo, traçado por Paul Gillroy. 

Segundo essa progressão, passamos da negação ao sentimento de culpa, seguido pela vergonha, o reconhecimento e, só depois, podemos começar efetivamente a agir na reparação.

Dito isso, que tal olhar no espelho hoje e enxergar mais do que o que mostra a imagem refletida? Que tal também se descobrir branco?

 

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.