O bullying que ocorria nos ambientes escolares e comunitários chegou à internet, com maior capacidade de alcance e gravidade. As ferramentas da internet ajudaram a diversificar as formas de bullying, com memes que viralizam e manipulações de falas e imagens que parecem reais, como no caso das meninas que tiveram suas fotos transformadas em nudes por inteligência artificial e lançadas nas redes por garotos da escola. A dificuldade de retirar essas fake news é igual a de segurar o vento.

Elas voam pela internet e desmentidos não fazem efeito, não atraem atenção.

A boa notícia é que o Congresso aprovou e o Executivo sancionou, em 15 de janeiro de 2024, a Lei 14.811/2024, que tipifica e inclui no Código Penal os delitos de bullying e cyberbullying e passa a considerar como hediondos diversos crimes cometidos contra menores de 18 anos.

A Lei acresceu ao Código Penal o artigo146-A, que tipifica o bullying como “intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais. Estipulando a pena de multa, se a conduta não constituir crime mais grave. E a intimidação sistemática virtual (cyberbullying), com o parágrafo único:

“Se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real: pena de reclusão, de 2 (dois) anos a 4 (quatro) anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave.”

O termo bullying foi incorporado ao vocabulário comum para designar o assédio sistemático e intencional a crianças e jovens em escolas e ambientes similares, por meio de atos, falas e imagens que intimidam, provocam constrangimento, humilhação, medo, sensação de vulnerabilidade.

Ah, não é novidade, bullying sempre existiu. Sempre tivemos de conviver com o “bully” da turma, o valentão, o agressor, e seus asseclas. Parece que sim. Mas, como em outros fenômenos sociais, o bullying foi grandemente potencializado pela sua presença e uso nas redes sociais, especialmente pelo whatsapp, outros aplicativos de conversas e até jogos on-line. Os valentões que frequentam as redes têm seguidores, milhares, milhões, que multiplicam suas bravatas e agressões físicas ou psicológicas.

Muitos acham que se divertem e alguém sofre.

Apelidos e chistes focalizando e ridicularizando aspectos físicos, condições ou modo de ser de pessoas, de qualquer idade, inclusive crianças e adolescentes, que ficavam restritos a pequenos grupos, uma turma, uma escola, ganharam as redes.

A pessoa-alvo fica exposta a constrangimentos que alcançam mais colegas e gente que nem mesmo a conhece, mas reproduz “a brincadeira”, o apelido, os memes, as imagens…O ridículo, o medo: a sensação de vulnerabilidade fere o alvo como uma faca. Isolamento social, queda na autoestima, queda no desenvolvimento escolar, até quadros de depressão, transtorno de ansiedade, síndrome do pânico …consequências graves para a vida de crianças e adolescentes, sua família, seus amigos.

A Pesquisa Nacional de Saúde Escolar, do IBGE, publicada em setembro de 2021 com dados de 2019, apurou que um em cada 10 adolescentes (13,2%) já se sentiu ameaçado, humilhado e ofendido em redes sociais, sendo um percentual maior entre as meninas (16,2%)

A dra. Lélia Castro de Souza, psicóloga clínica e doutora em Psicologia e Psicopatologia, afirma que o bullying na escola pode até afetar a vida adulta:

“A clínica psicológica dos adultos encontra frequentemente os efeitos do processo de bullying na escola e, em particular, nos casos em que o bullying não pôde ter sido percebido, na época, em sua dimensão deletéria, por parte dos adultos, pais e professores. Os efeitos de tais agressões sofridas se exprimem, por exemplo, no adulto, pela presença de ansiedade, de falta de estima de si mesmo e de sintomas de depressão (…)”

As raízes do bullying e do cyberbullying são os preconceitos presentes na sociedade, quase sempre, ligados à aparência física, cor da pele, tipo de cabelo, etnia, origem, condição social, gênero, opção sexual, religião, costumes, opiniões. Vem da dificuldade da sociedade de lidar com o diferente, o que foge aos padrões de determinado grupo ou situação social e do desejo, explicito ou não, de subjugá-lo e excluí-lo. E de fazer isso ridicularizando, “brincando”.

O bullying, quer apoiado em características da pessoa-alvo quer em manipulações falsas, é capaz de causar intenso sofrimento a crianças e adolescentes. Parece muito necessário deixar de pensar que é brincadeira inocente e perguntar-se sobre os interesses que podem estar por detrás desse fenomeno.

Para Ttoffi et al., citados pela Dra. Souza: uma criança vítima de bullying na escola de Ensino Fundamental tem quatro vezes mais riscos de suicídio na adolescência, possivelmente como consequência de um estado depressivo que, aliás, tenderia a permanecer e desenvolver-se mais tarde, na fase adulta.

Na internet, o “bully” pensa que está protegido pelo anonimato e se sente à vontade para agredir e intimidar. E, por detrás de jovens que acham engraçado intimidar, que assumem esse papel sem medir consequências, muitas vezes existem adultos interessados em aliciamento de crianças e adolescentes, pessoas ligadas a indústria da pornografia, ao sequestro, ao tráfico de pessoas.

Aparentemente valentões nas redes, jovens, por vezes eles também vítimas de bullying, podem ser presa fácil e teleguiados por aliciadores, como aconteceu recentemente nos ataques a escolas. O jovem de 16 anos que realizou ataque a uma escola em Sapopemba, São Paulo, em outubro de 2023, e que vitimou uma adolescente, disse que cometeu o ato para revidar o bullying que sofria. Ele participava de um grupo na plataforma Discord e chegou a tatuar uma suástica a faca em sua própria perna.

(www.cnnbrasil.com.br, matéria de Marcos Guedes, da CNN, em 23 de outubro de 2023)

No caso de crianças e adolescentes, é preciso ter o mesmo cuidado com as vítimas e com os bullies, ambos vulneráveis e possivelmente espelhando comportamentos que observam na sociedade.

A regulação da internet e especialmente das redes sociais e aplicativos tem sido tema de muitos países e da própria Organização das Nações Unidas. A Comunidade Europeia tem uma regulamentação em recente aplicação. Aqui no Brasil o assunto se estende, pelo menos desde 2020, com o projeto de lei 2640 (PL das Fake News).

Muitos dispositivos legais precisam ser atualizados e discutidos face a esse novo desafio, por dois motivos: o dilema entre liberdade de expressão e controle, que se inflama na sociedade polarizada e o desinteresse na regulação das redes e aplicativos pelas bigtechs transnacionais, como a Meta e o império digital de Elon Musk.

 

Pela Lei aprovada em 15 de janeiro, os governos municipais, com apoio dos governos estaduais e federal, deverão elaborar protocolos para os estabelecimentos educacionais e similares, de modo a orientar sua ação e, também, a promover as capacitações necessárias.

Já era possível identificar os autores de mensagens contendo bullying e, agora, será possível levá-los e a seus responsáveis a responderem legalmente pela infração, na medida de sua gravidade. Com a divulgação e orientações sobre as determinações legais aos pais, professores e às crianças e adolescentes, a lei poderá contribuir para coibir, em alguma medida, a ação irresponsável e permitir que todos fiquem conscientes dos riscos do cyberbullying.

É um passo para que seja construído um arcabouço legal que garanta a liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, coíba, identifique e puna crimes cometidos pela rede.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.