Quando ouvi o cantor, compositor e escritor Emicida falando em um podcast que pessoas negras têm muito a contribuir, para além da militância – liguei um alerta. Ele afirmava que nem todos são militantes, que nem todo militante milita o tempo todo e, acima de tudo, que existe uma cultura de se esperar algo estereotipado vindo de pessoas negras, e assim se apagando ou reduzindo a complexidade e o conhecimento que essas pessoas têm sobre assuntos específicos, que em nada se ligam à raça.
Assistir “Ficção Americana” me fez resgatar imediatamente o que Emicida falou naquele podcast. O filme traz uma crítica contundente ao que a branquitude deseja consumir quando se depara com algo produzido por pessoas negras: estereótipo. Nada além disso. Esperam dor, sofrimento, escravidão, subjugação. Nunca algo profundo e livre de referências à raça.
O longa nos conduz a reflexões sobre relações raciais, privilégio branco, racismo estrutural e subjugação do negro como produtor de ciência, arte e conhecimento – e o faz com leveza, para quem consome o conteúdo sem o compromisso da análise crítica das questões tratadas.
A leveza cai por terra, no entanto, quando assistido por pessoas que se dedicam a estudar e entender as relações raciais, especialmente nos dias atuais, quando o que mais vemos é o tema ganhando espaço, na grande maioria das vezes muito mais como forma de atender a uma demanda de marketing do que efetivamente focando no protagonismo e na valorização do conhecimento produzido por pessoas negras.
A construção da narrativa do filme se concentra no protagonista, Thelonius “Monk” Ellison, que tenta se desvencilhar o tempo todo dos estigmas. Como escritor, vê seus livros que não abordam questões raciais serem rejeitados o todo tempo todo, por “não serem negros o suficiente”.
Ao resolver brincar com o sistema, usa um pseudônimo para colocar no mercado uma obra que vai completamente na contramão do que ele costuma escrever, mas que atende exatamente aos anseios do que se espera de uma escrita negra. Para seu misto de surpresa e desespero, o livro é um sucesso de vendas.
Ao lado de toda a jornada que ele percorre, arrancando risadas e reflexões, existe um segundo ponto, que não pode ser deixado de lado. Em um dado momento, “Monk” recebe o convite para compor o corpo de jurados de um prêmio literário. Poderia ser somente um convite, mas ele vem acompanhado da justificativa: o júri está embranquecido demais, e precisa ser, de certa forma, colorido.
Mais uma vez, sua competência é colocada em segundo plano. Fica claro e explícito que o convite visa tão somente atender a uma necessidade de resposta à mídia: a diversidade.
Indicado ao Oscar nas categorias de melhor filme, melhor roteiro adaptado, melhor ator (Jeffrey Wright), melhor ator coadjuvante (Sterling K. Brown) e melhor trilha sonora, o filme levou a estatueta do melhor roteiro adaptado (é uma adaptação do livro “Erasure”, de Percival Everett), e em momento algum foi levantado como favorito para qualquer dos outros prêmios.
Era o único filme com envolvimento de equipe e atores negros, tratando da temática negra, ainda que com ares de leveza e comédia.
Fica uma torcida pessoal para que a indicação, além de colorir a lista de indicados ao maior prêmio do cinema mundial, leve as pessoas a assistirem e refletirem sobre o que esperamos de pessoas negras.
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