“Quando uma mulher chega na alta liderança a gente fica impressionado… mas caramba, a moda é voltada para a mulher. Deveria ser comum. Só que não é”, diz Kátia Barros, diretora criativa e co-fundadora da FARM Rio. Em uma indústria que veste, celebra e se inspira no universo feminino, ainda são os homens que ditam as regras na moda. As mulheres dominam o consumo, a produção e os cursos de formação, mas continuam sub-representadas nas posições de liderança. É uma contradição estrutural que se repete ano após ano, coleção após coleção.
Há mais de duas décadas, Kátia Barros transformou uma pequena barraca na Babilônia Feira Hype, no Rio de Janeiro, em uma das marcas brasileiras mais reconhecidas internacionalmente: a FARM Rio. “Nós temos valores muito interessantes como a própria alegria, que o brasileiro tem na sua essência. Festividade, alegria, coisa da brasilidade. Então, a gente leva isso pelo jeito de se vestir, pelas cores, estampas, a natureza..”, conta.
À frente da direção criativa, Kátia construiu um universo colorido ao lado do sócio, Marcello Bastos, que conquistou vitrines em Nova York, Paris e Londres, sem abrir mão de um olhar profundamente humano sobre o processo criativo.
Diferente da maioria das marcas do setor, essa visão também se traduz na estrutura interna da empresa. Na FARM, 93% dos colaboradores são mulheres e 87% dos cargos de alta liderança também. “Isso aconteceu de forma natural. Desde o começo, a marca valorizou escuta, acolhimento e criatividade, e as mulheres foram crescendo junto com ela”, diz Kátia. O resultado é um raro exemplo de empresa em que a liderança feminina não é exceção, mas parte da cultura.
Uma indústria dominada por homens
A mais recente temporada internacional, por outro lado, reforçou a desigualdade presente no setor. Entre as dezenas de desfiles que marcaram as semanas de Paris, Milão, Londres e Nova York, dos 18 novos diretores criativos anunciados desde o meio do ano passado, apenas seis são mulheres.
Entre elas, Louise Trotter, no comando da Bottega Veneta, é a única designer feminina dentro do grupo Kering, maior conglomerado de luxo que detém marcas como Gucci, Balenciaga e Saint Laurent. Também foram nomeadas Sarah Burton na Givenchy, Veronica Leoni na Calvin Klein, Meryll Rogge na Margi e Maria Grazia Chiuri na Fendi.
A comemoração com a mais nova nomeação da britânica Grace Wales Bonner para a linha masculina da Loewe torna-se, nesse contexto, sintomática. A estilista é a primeira mulher negra a comandar a marca, mas o fato de sua chegada ainda ser tratada como um evento revela o quanto o setor permanece distante da igualdade.
Segundo análise das principais casas de luxo apontadas pelo portal Fashionista, as mulheres representam apenas 23% do total de diretores criativos, com apenas 10 representantes diante de 34 homens. “Durante anos, eu vi habilidades como empatia, sensibilidade e escuta serem tratadas como ‘coisas de mulherzinha’, fragilidade ou mimimi. Mas, pra mim, isso é superpoder”, afirma Kátia.
Mesmo marcas fundadas e estruturadas no universo feminino, como a Chanel, seguem sob comando masculino, com Matthieu Blazy na direção. A Dior e a Celine repetem o mesmo padrão com a entrada de Jonathan Anderson e Michael Rider nessa temporada, consolidando uma engrenagem que, quase automaticamente, mantém o poder criativo nas mãos dos homens.
Barreiras invisíveis
O paradoxo é gritante: as mulheres representam entre 75% e 80% da força de trabalho global do setor, segundo a Global Fashion Agenda de 2024, mas quanto mais se sobe na hierarquia, em cargos de vice-presidência, alta gestão e conselhos administrativos, menos delas restam, até que apenas algumas chegam ao topo, ou praticamente nenhuma.
“Essas pequenas violências cotidianas, como quando nós somos empurradas para papéis secundários, te colocam todos os dias em um lugar menor. “Fico muito feliz de ver as diretoras da Farm muito presentes nessas discussões também. Que não passam só pelo criativo, mas por hard skills. De poder colocar o tal do pau na mesa”, diz.
Além do desequilíbrio de poder, há também o abismo salarial. No mesmo relatório, constatou-se que as mulheres ganham entre 20% e 27% menos do que os homens em funções equivalentes. Essa realidade está presente em quase todos os setores, mas na moda se torna ainda mais relevante por ser uma indústria que tem as mulheres como público-alvo. Elas contribuem para 46% do total de vendas no mercado de luxo, os homens são responsáveis por apenas 38%, segundo relatório da Global Grown Insights.
A dinâmica repete um padrão histórico: enquanto o trabalho criativo é visto como artesanal, emocional ou “menor”, as mulheres ocupam espaço. Porém, quando o mesmo trabalho passa a ser associado a prestígio e lucro, os homens assumem o controle. É só analisar as cabeças por trás dos principais conglomerados de luxo: Bernard Arnault (LVMH), Luca de Meo (Kering) e Nicolas Bos (Richemont Group), todos homens.
“Acho que a mulher, sobretudo, tem capacidade, habilidade e sensibilidade para trocar. Estou rodeada de homens na indústria, então me sinto nesse lugar de trazer uma sabedoria, um cuidado com as particularidades da marca”, diz Kátia, que integra o Grupo AZZAS2154 ao lado de diretoras como Maria Rita Magalhães Pinto e Nati Vozza, da Maria Filó e da NV Store.
O legado e o futuro feminino na moda
É quase paradoxal que, em um setor que sempre girou em torno da mulher, tantas empresas ainda resistam a colocá-la no comando. O mercado global de vestuário feminino, segundo dados da UniformMarket, deve alcançar US$1 trilhão até 2027, superando com folga o segmento masculino, estimado em cerca de US$639 bilhões.
As mulheres, além de serem as maiores consumidoras, sempre protagonizaram e impulsionaram mudanças no setor. Durante as duas guerras mundiais, Coco Chanel libertou o corpo feminino das amarras do espartilho e transformou peças masculinas em símbolos de autonomia, abrindo caminho para que a moda se tornasse expressão de poder e liberdade. Elsa Schiaparelli, por sua vez, aproximou a moda do surrealismo, criando roupas que provocavam, questionavam e transformavam a vestimenta em arte, em tempos de caos social.
De Stella McCartney, com sua moda sustentável, a Mary Quant, que inventou a icônica minissaia, passando por Vivienne Westwood e o punk rock, até Miuccia Prada, que rompeu o paradigma da beleza e desafiou a ideia de que a roupa serve apenas para embelezar, a moda tem sido moldada por mulheres que redefinem estética e poder.
Hoje, marcas visionárias dirigidas por mulheres, como Donatella Versace e Rei Kawakubo, mostram que a liderança feminina pode unir criatividade, estratégia e influência cultural. “Tenho certeza absoluta que o futuro é feminino e colaborativo. Essas são as habilidades, os superpoderes das mulheres, transitar entre os dois mundos – criativo e administrativo”, acrescenta Kátia.
