Falo do lugar que ocupo, de mulher branca, me referindo a  brancos que, de certa forma, não deixamos de estar representados por aquele lápis da caixinha. Ele seria, dentre os demais, o escolhido para colorir um desenho que representasse a grande maioria de nós, apesar de não sermos numericamente a maioria.
Automatismo. Assim aprendemos, assim ouvimos, assim passamos a reproduzir, sem pensar no que estamos ensinando para as gerações seguintes.
Quem, quando e por que começamos a denominar aquela cor como se um padrão de cor de pele fosse? Certamente na mesma época não identificada e perdida na evolução do tempo, na qual passamos a ter o branco como padrão, como normal, sendo o outro, o não branco, o diferente, o racializado.
Negros foram, por séculos, afastados do próprio conceito de humanidade. Charles Mills, em seu livro “O contrato racial”, utiliza a expressão “sub-pessoa” para denominá-los.
Escutar e repetir o termo utilizado choca, dói, assusta. Assim como deveria doer, chocar e assustar a reprodução de padrões de comportamento que, ainda hoje, dentro de um discurso progressista, se esconde por trás do mito da democracia racial (“somos todos iguais”), mas ensina às próximas gerações que aquele lápis pode continuar a ser chamado “cor de pele”.
Gosto de usar como referência um livro infantil chamado “A cor de Coraline”, no qual, logo no primeiro diálogo, Pedrinho, colega de Coraline, lança a frase que dita a tônica da história:
        “Coraline, me empresta o lápis cor de pele”?
Se alguém agora te fizesse o mesmo pedido que Pedrinho fez, qual seria o lápis que você entregaria? Qual seria sua reação?
Muito provavelmente, automática, em busca daquele rosinha falado ali atrás.
Coraline não faz isso. Ela começa a pensar, ao longo das páginas seguintes, sobre qual cor de pele Pedrinho estaria falando.
Pedrinho e Coraline só aparecem coloridos na cena final. Aquela na qual Coraline nos dá uma aula sobre quebrar o automatismo:
         Quer lápis cor de pele? Pois que seja! Mas, para mim, lápis cor de pele é o da MINHA pele.
Não é o que está escrito, mas é a mensagem que passa quando ela, representada como uma menina negra, entrega o lápis marrom para Pedrinho, menino branco, que fica com cara de quem não está entendendo nada.
O mercado começou há alguns anos a entender o recado. Primeiro, vieram alguns lápis “dos diferentes tons de pele”, como eram chamados, dentro das caixas regulares de lápis de cor. Com o tempo, caixas inteiras somente com tais tonalidades. Hoje conseguimos encontrar giz de cera, massinha, canetinha…
São instrumentos para que crianças negras se representem nos próprios desenhos, e isso é, sem sombra de dúvida, empoderador.
Quebrar o automatismo nelas nem é tão desafiador assim. Pais de crianças negras ficam felizes em garantir que seus filhos possam se ver nos desenhos que colorem. Mas, para eles, a questão da falha na hora de se representarem sempre foi latente. Sempre esteve ali. Sempre incomodou.
Pessoas brancas são as que mais normalizam e repassam para as gerações seguintes que aquele rosinha é sinônimo de cor de pele.
A grande responsabilidade, então, talvez recaia sobre os pais de crianças brancas. Cabe a eles escolher se seus filhos seguirão como Pedrinho, pedindo emprestado o lápis cor de pele, ou serão levados a entender que cores de peles existem várias, e que precisamos abrir os olhos para enxergá-las.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.