Nos jogos olímpicos que terminaram ontem em Paris, a China se consolidou como potência olímpica feminina, com 69% da delegação composta por mulheres. As atletas chinesas têm forte presença nas olimpíadas há muito tempo, tanto que são reconhecidas pelo alto rendimento nos esportes olímpicos e acumulam mais medalhas de ouro que os homens. Mais uma vez, a excelência delas se refletiu no desempenho do país, conquistando 57 das 91 medalhas, incluindo 24 de ouro. Esse resultado é significativo quando comparado aos 124 anos que o Comitê Olímpico Internacional levou para alcançar a paridade de gênero.
O Brasil também celebrou avanços importantes, com 55% de sua delegação feminina. As atletas negras, em particular, foram destaques, contribuindo para a conquista das três medalhas de ouro, contrariando a crença de superioridade dos homens.
Minha experiência na China, onde morei por um período, só aguçou meu interesse pela cultura chinesa. Nas Olimpíadas de Paris acompanhei de perto as competições femininas e fiquei me perguntando sobre o que está por trás do desempenho dessa gigante asiática.
Para melhor compreender essas questões, conversei com Emanuel Leite Jr., pesquisador associado da Universidade Tongji e coautor do livro China, Football and Development: Socialism and Soft Power. Emanuel destacou a importância estratégica dos esportes no desenvolvimento econômico, no fortalecimento da autoestima e dignidade nacional.
Um reflexo disso é o volume de investimentos destinados ao setor esportivo pelo governo chinês. Segundo o pesquisador, mesmo no período de alto nível de empobrecimento, ente 1981 e 1985, o país investiu o equivalente a 2 bilhões de reais nos esportes. Nos quatro anos seguintes, esse valor duplicou e, atualmente, alcança 5,5 bilhões de reais no ano. Em comparação, o Brasil investe em média 1,17 bilhão de reais por ano.
A dimensão da indústria esportiva chinesa é ainda mais impressionante. Atualmente representa 1,5% do PIB e a projeção é que esse índice alcance 5% até 2035, o que levará o país a se tornar o maior mercado esportivo global.
Considerando a perspectiva de gênero, será que o desempenho olímpico feminino tem alguma correlação com investimentos? Emanuel, por exemplo, entende que o desempenho superior das mulheres chinesas no esporte impulsiona a alocação de recursos. Ele cita o “Princípio das cinco palavras” que orienta a política de investimentos chinesa nos esportes olímpicos.
Essa estratégia estabelece critérios para priorização de alocação de recursos, com base nas seguintes características: “pequeno” refere-se aos esportes de bola pequena, “rapidez” à modalidade que requer velocidade, “agilidade” inclui a ginástica artística, “água” é a referência para os esportes aquáticos e “mulher” prioriza a categoria feminina, sobretudo nos esportes coletivos.
Apesar do pragmatismo chinês e das políticas institucionais implementadas favorecerem o avanço da equidade de gênero, a mudança de mentalidade infelizmente parece não acontecer na mesma velocidade e nem de forma homogênea pelo país. As chinesas, assim como as brasileiras, também vivem dilemas e desafios inerentes à condição feminina.
Uma vez, uma amiga chinesa me contou que não cursou universidade e nem teve a oportunidade de fazer esportes porque o pai entendia que não valia a pena investir nela porque era mulher. Navegando pelos principais portais da mídia digital chinesa, encontrei artigos escritos por mulheres expondo as injustiças e desigualdades de gênero no país.
Tem um ditado chinês que diz que os homens acreditam que as mulheres são fortes e as mulheres acreditam que, por trás de toda mulher de sucesso, há um homem que lhe causa sofrimento. Ao pensar na realidade brasileira, eu também diria que, por trás de mulheres com bons resultados, existem estruturas regidas que não facilitam a sua vida. E, por trás de muitas mulheres que não conseguem atingir resultados e nem ganhar visibilidade, existem estruturas que as impedem de ter acesso à oportunidade.
O que me faz pensar sobre quais seriam as histórias por trás dos largos sorrisos dessas atletas, que fizeram milhares pessoas vibrarem pelas conquistas nessas olimpíadas? Quais obstáculos enfrentaram até o pódio? Para uma Bia Souza, que conquista o ouro, quantas Bias ficaram no meio do caminho?
Por fim gostaria de lembrar que romantizar histórias de sucesso é como negar a existência de desigualdades. Agarro-me na esperança de que mais mulheres possam ter oportunidades, recursos, rede de apoio e pessoas aliadas para desenvolverem ainda mais seus talentos e assim poderem deixar mais legados no mundo
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da IstoÉ
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