Antes de sonhar com os palcos da Europa, Lorena Pires já conhecia os desafios de ocupar espaços onde pessoas como ela raramente chegam. A cantora de 25 anos cresceu na periferia da Serra, no Espírito Santo, em uma família com raízes quilombolas e, agora, irá atravessar o oceano para integrar a Academia de Ópera de Paris, programa de elite dedicado à formação de jovens cantores no coração da capital francesa.
O feito é simbólico: a presença de uma mulher negra nas fileiras da ópera europeia — um ambiente historicamente elitizado e excludente — reforça o avanço, ainda lento, da diversidade na música erudita internacional. “É uma responsabilidade muito grande. Agora tem muita gente olhando para mim, muitos jovens se inspirando”, reconhece Lorena, ciente do que representa.
Antes de se render à música, pensou em seguir outros caminhos: nutrição, educação física, direito, ciências sociais. Mas tudo mudou em 2016, no segundo ano do ensino médio, quando começou a fazer aulas de canto em Vitória. Ali, as professoras viram algo além da afinidade com a música pop, um dos seus gêneros favoritos. “Elas conseguiram perceber uma coisa na minha voz, algo para o lírico”, conta.
O ponto de virada veio em 2018, ao assistir, pela primeira vez, a uma ópera. Foi uma montagem simples, mas suficiente para provocar o encantamento. “Tinha figurino, orquestra de câmara [conjunto musical composto por um número reduzido de músicos], movimentação… Eu pensei, meu Deus, isso é muito legal”, diz. Pouco tempo depois, decidiu: seguiria pelo caminho do canto lírico.
Em 2019, ingressou na Faculdade de Música do Espírito Santo (FAMES), onde cursou bacharelado em Música com habilitação em Canto Erudito. Desde então, o palco e as partituras se tornaram rotina. “O canto lírico tem sido meu carro-chefe”, afirma. Mas, mesmo mergulhada na técnica, não esqueceu das referências que a formaram: até hoje, Beyoncé continua sendo uma de suas maiores inspirações.
O currículo começou a ganhar projeção em 2023, quando Lorena conquistou o primeiro lugar no Concurso Joaquina Lapinha e recebeu o Prêmio Maria D’Aparecida, criado em homenagem à primeira brasileira negra a cantar na Ópera de Paris. A vitória garantiu sua participação na Temporada Lírica do Theatro Municipal de São Paulo.
Aliança entre países
A oportunidade de chegar à Academia de Ópera de Paris começou a se desenhar em 2024, durante um intercâmbio pela iniciativa do Ano Cultural Brasil-França. Lorena foi selecionada para uma temporada de atividades em Paris, onde teve aulas com professores da instituição e se apresentou no teatro Bastilha e na residência do embaixador brasileiro.
A experiência abriu portas — e alimentou o desejo de tentar algo maior. Mesmo sem falar francês fluentemente, se inscreveu para as audições da academia. “A gente é brasileiro, primeiro consegue o negócio e depois vê como faz”, brinca sobre o improviso necessário para driblar as dificuldades.
A audição, realizada em dezembro de 2024, foi no emblemático palco da Bastilha, com capacidade para quase três mil pessoas. O frio na barriga e o nervosismo estavam presentes, principalmente por conta de uma das peças escolhidas, que ela teve pouco tempo para preparar. “Eu sabia que eu precisava trabalhar muito aquela peça”, diz. Ainda assim, encarou o desafio e foi em frente. Meses depois, veio o e-mail oficial: havia sido aprovada como artista residente da temporada.
A conquista carrega um peso simbólico ainda maior. Há 60 anos, Maria d’Aparecida, também negra e brasileira, entrou para a história ao substituir Maria Callas em uma apresentação da ópera Carmen, em Paris — e depois caiu no esquecimento no Brasil. Lorena, que já pesquisava a trajetória da pioneira, agora segue os mesmos passos na mesma instituição e no mesmo palco. “Dois anos atrás, eu estava escrevendo sobre ela. Agora, parece que estou trilhando um caminho parecido”, afirma.
O próximo passo acontece já em setembro, quando começa oficialmente a residência na Academia de Ópera de Paris. Antes disso, ela cumpre uma série de apresentações no Brasil, com shows no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em São Paulo e no Teatro Guaíra, em Curitiba. Já em janeiro, sobe ao palco do Garnier, um dos mais tradicionais da França, para o concerto de gala da academia.