Importamos a palavra BET, assim como tantas outras “tendências” que já vêm embaladas para nosso país, no bojo de interesses econômicos nacionais e transnacionais. O termo BET, que significa uma aposta feita em relação ao resultado incerto de um evento, acabou nomeando as casas de apostas on-line.
A prática do jogo não é novidade. O jogo de azar, as apostas e seu caráter viciante, acompanham a história da humanidade. Se de um lado o indivíduo pode usar a sua liberdade para jogar ou para outros hábitos compulsivos, cabe aos países regularem as atividades para que elas não prejudiquem a sociedade.
O Banco Central apresentou dados mostrando que as casas de apostas on-line movimentaram 160 milhões de reais em oito meses deste ano. (“Análise técnica sobre o mercado de apostas online no Brasil e o perfil dos apostadores”. Banco Central. Estudo Especial nº 119/2024, setembro de 2024)
Com essa grande movimentação, o setor de apostas ainda atua no Brasil sem regulamentação completa e as estimativas de movimentação financeiras são imprecisas. A oferta de sites de apostas esportivas é liberada no país desde 2018, por lei aprovada no governo Michel Temer.
O governo de Jair Bolsonaro não fez a regulamentação. O governo Lula editou em 2023 uma medida provisória e o Congresso aprovou a Lei 14.790/23. A regulamentação final só deverá vir pela reforma tributária, que está no Congresso e deverá valer a partir de janeiro de 2025.
Segundo a citada análise do Banco Central, de janeiro a agosto de 2024, 24 milhões de pessoas físicas em todo o país participaram de jogos de azar – entre elas, 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família.
O HST Specialist Researchers, grupo de pesquisa de mercado, entrevistou 500 pessoas em relação a apostas on-line. Nesse grupo, 400 são mulheres, acima de 18 anos, de diferentes classes sociais, de todas as regiões do país. O grupo apurou que 76% dos entrevistados apostam pelo menos uma vez por semana e 55% dos que apostam muito frequentemente, quase todos os dias, admitem já ter perdido o controle ao fazer apostas on-line. Para Naira Maneo, socia-diretora da Minds & Herts, empresa membro da HSR, especialista em comportamento humano, “essas plataformas têm um poder de vício muito rápido, pois têm um prazer associado a isso. Me lembra então muito a indústria de cigarro e de bebida.” (matéria de Ana Clara Veloso, Rio de Janeiro, para o Extra Economia, em 26 de setembro de 2024 – extra.globo.com).
Matéria de Marcos Rogerio Lopes afirma que dos milhões de apostadores que começaram a usar as BETs nos últimos seis meses, 62% são mulheres (uol.com.br – 27 de agosto de 2024).
O fenômeno das BETs está chamando a atenção pela sinalização de um aumento do vício em jogar, o que o expressivo volume das apostas parece corroborar. O psicólogo Felipe Gomez, em entrevista a Murilo Badessa (EPTV, 29/09/24), considera que o vício em jogos em casas de apostas on-line é uma compulsão que, assim como na dependência química, vai progressivamente tomando conta da pessoa:
“Acontece também de uma forma que escala, e as consequências desse comportamento vão levando a pessoa justamente a ter problemas nos seus outros ambientes, nos seus relacionamentos, em situações de sua vida passam a ter perdas significativas. E mesmo tendo essas perdas elas não conseguem frear a compulsão por aquele vício de um jogo patológico”. Ele comentou ainda que os consultórios estão observando um aumento significativo, praticamente uma epidemia acontecendo.
O transtorno é reconhecido na Classificação Internacional de Doenças (CID-10) como jogo patológico. Nessa classificação não há distinção entre jogos eletrônicos e de azar, jogo de apostas e cassinos on-line ou reais. E “consiste na presença de episódios de jogo que dominam a vida da pessoa, prejudicando seus compromissos sociais, profissionais e familiares” e, não raro, causando problemas financeiros. (“Vício em jogos eletrônicos e de azar. Quais os sintomas? Há tratamento?” IPPR Instituto de Psiquiatria do Paraná https://insititutodepsiquiatriapr.com.br)
A compulsão por jogo caracteriza-se por um vício persistente em jogar, apesar de consequências negativas, funcionando de forma semelhante à dependência de álcool e drogas. A pessoa começa a jogar por curiosidade, interesse em algum prêmio ou ganho, mas pode acabar dependente. “Os jogos de azar despertam prazer imediato tanto quanto as drogas e podem instigar diversas partes do cérebro, como o córtex pré-frontal, responsável pelas tomadas de decisão, e o córtex frontal orbital que regula o controle das emoções. Com essas duas capacidades ´sequestradas´, o indivíduo fica completamente à mercê do vício.” (Marcelo Parazzi, “Como ajudar alguém com vício em jogos de azar”, 2 de maio de 2024. www.marceloparazzi.com.br).
A preocupação com essa compulsão começou a crescer em relação aos adolescentes que passaram a utilizar muitas horas de seu tempo para se dedicar a jogos eletrônicos, solitariamente ou com outros jovens, chegando a prejudicar sua dedicação à escola e às relações familiares e sociais em geral, e ficando expostos a outros riscos, como assédio pela rede social. Talvez até mesmo inspirado nesse “sucesso” alcançado com adolescentes, o mesmo processo, por meio das BETs on-line, alcança agora a população jovem e adulta, principalmente de 20 a 30 anos (Análise do Banco Central citada).
Assim como ocorre com os jovens, a facilidade de acesso às plataformas, proporcionada pelos aplicativos móveis e internet, é um dos fatores que ajudam a explicar o agravamento das práticas de apostas em jogos de azar e a possibilidade de desenvolver comportamento vicioso. A pessoa não tem de sair do país para ir a um cassino, não precisa procurar uma banquinha do jogo do bicho ou um bingo ilegal. Não precisa sair de casa, não precisa se expor, porque hoje joga sozinha pelo seu celular.
Essa facilidade é alimentada nas plataformas da internet que, por meio dos algoritmos, se encarregam de captar e fidelizar o jogador ou potencial jogador. Se você entrar, ainda que apenas por curiosidade, num aplicativo de apostas, certamente vai passar muito tempo recebendo outras imagens semelhantes, publicidade, memes, apelos para apostar… Assim funcionam os algoritmos, para tudo – detectam nosso interesse, ainda que numa simples visualização, e nos colocam numa roda viva onde ficamos sendo bombardeados por anúncios de jogos, que visam estimular o interesse e, em seguida, alimentar a compulsão.
A isso se soma a estratégia de comunicação da nossa sociedade pós-moderna, com publicidade, pela mídia e pelas redes sociais, por influenciadores, gente famosa, bonita ou rica, que atrai as pessoas e ajuda a acionar gatilhos mentais.
Três mulheres brasileiras, atletas medalhistas de ouro em Paris, fazem comercial para uma BET. Falam que, se você quiser progredir ou ter sucesso tem de estudar e se esforçar muito, mas se quise se divertir – só se divertir – pode jogar. O subtexto sugere que jogar é gostoso e inofensivo se for pra se divertir. É a chamada para a “compulsão recreativa”. Mas a maioria sequer se preocupa com a ressalva, ao contrário, enfatiza a mentira do ganho alto e fácil.
Outros casos parecem ser, mais do que de mídia, casos de polícia, como de uma influenciadora presa recentemente, que acabou chegando a um cantor famoso, empresários e a uma intricada rede de ganhos multimilionários, ainda pouco esclarecida. O temor é que o chamado crime organizado domine esse segmento, como já ocorre com as drogas ilícitas.
Enquanto isso, mais sinais de alerta, sobre os que são ou podem ser capturados pelo vício em jogo. Segundo o psicólogo Marcelo Parazzi, “o vício em jogos de azar é caracterizado por um padrão persistente de comportamento de jogo, apesar das consequências negativas que ele pode trazer e considerando que, como em outros vícios, pode ocorrer a contribuição de fatores genéticos, ambientais (como exposição constante ao jogo) e problemas psicológicos.
Alguns dos sintomas comuns incluem incapacidade de controlar ou interromper o comportamento de jogo; priorização do jogo em relação a outras atividades importantes; mentiras sobre o tempo ou dinheiro gasto com o jogo; excesso de competitividade que pode se refletir no dia a dia; sentimento de culpa ou remorso após o jogo; necessidade de jogar com quantias cada vez maiores para sentir a mesma emoção; ocultação das perdas; furtos ou outras transgressões para manter o vício e saldar dívidas; preocupação constante com o jogo, mesmo quando não se está jogando.
Existem opções de tratamento e os mais comuns incluem psicoterapia, atuações multidisciplinares e a frequência a grupos de apoio (como Jogadores Anônimos), sempre considerando que o processo de desconstrução de um vício pode ser longo e precisa de apoio familiar ou do círculo mais próximo.
Ao ter próximo alguém com compulsão em jogar a orientação do especialista é abordar o assunto com empatia, evitando julgamentos e críticas, oferecendo-se para ajudar a encontrar tratamento ou recursos de apoio, incentivando a pessoa a procurar ajuda profissional e de grupos, e também estabelecendo limites e protegendo as suas próprias necessidades enquanto oferece suporte ao outro.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da IstoÉ
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