Como reagir diante da tempestade de informações sobre violência? A alternativa não é a mera submissão, a resignação. A alternativa é a não-violência. Essa afirmativa sempre causa um susto ou uma recusa direta até de pensar no assunto. Como disse o professor e filósofo francês Jean-Marie Muller: “a violência dá exemplos em excesso de fracassos para que não tenhamos a inteligência de tentar a não-violência.

Nesse ponto, vale refletir um pouco sobre Gandhi nesse dia 30 de janeiro – o dia mundial consagrado à paz e à não-violência, instituído pela ONU como homenagem ao 30 de janeiro de 1948, data em que o líder pacifista indiano foi assassinado.

A Índia, que é hoje uma potência mundial, esteve sob dominação britânica, desde o século XVIII até a independência em 1947. Como acontece nas colônias, a elite hindu se formava em universidades inglesas e alguns desses jovens, de volta para seu território, passaram a questionar a dominação britânica e a liderar movimentos de libertação.

Também formado em Londres, em Direito, e depois de anos na África, onde viveu sob o apartheid, Gandhi retornou à Índia, com a proposta filosófica da não-violência, inspirada nas suas experiências, nos ensinamentos do Bhagavad Gita, livro sagrado hindu, e no pacifismo de Jesus, narrado pelos seus apóstolos. Essa visão, segundo Lia Diskin, delineou uma “arquitetura da mobilização social das massas de forma não-violenta”.

Gandhi passou a disseminar a ideia de resistência pacífica e de desobediência civil como estratégias para a libertação do país. São práticas não-violentas de superação de conflitos, efetivas quando uma das partes não se dispõe a negociar.

Entre as mazelas da dominação, a população era proibida de comercializar seu próprio sal e obrigada a adquirir, dos britânicos, insumos para seu provimento, como tecidos. Em 1930, Gandhi lidera a chamada Marcha do Sal, onde, com seus seguidores, recolhe sal de uma salina e o vende. Por esse ato de rebeldia Gandhi foi preso, como aconteceria em outras ocasiões. Em relação aos tecidos, mobilizou seus adeptos para tecerem suas próprias roupas, motivo pelo qual é frequentemente retratado com uma roca e uma vestimenta assim produzida.

Outros pacifistas do séc. 20, como Martin Luther King Jr., Desmond Tutu e Nelson Mandela aplicaram práticas de não-violência em situações de conflito. É de Luther King a frase “Se a humanidade há de progredir, não poderá esquecer Gandhi.”
A raiz da filosofia da não-violência, delineada e praticada por Gandhi, está na solidariedade e no respeito por todas as formas de vida. Gandhi cunhou o binômio satyagraha∕ahimsa – ater-se a verdade e à não violência – como fundamento da convivência pacífica. É uma perspectiva de promoção da paz social ativa – condição para o desenvolvimento do potencial humano e do fortalecimento do sentimento de comunidade entre os seres vivos.

Sublinho a visão gandhiana da comunidade da vida, o fato de nós, humanos, integrarmos um grande conjunto de seres vivos, em constante evolução e codependência – a Teia da Vida, de que nos fala o escritor e físico austríaco Fritjof Capra. Nós coexistimos na Natureza.

Nos dias atuais percebemos que nosso modo de vida também tem funcionado como uma guerra violenta contra a própria natureza de que fazemos parte. Nem sempre percebemos que estamos em conflito violento com grupos mais vulneráveis da população humana, mas também com os animais, com a vegetação, com a água. O modo de vida da chamada civilização ocidental tem sido uma arma que alimenta a desigualdade, extingue espécies, fragiliza a biodiversidade, desertifica o solo, polui o ar e a água e nos levou ao aquecimento global, gerador das mudanças climáticas. Uma guerra em que somos, ao mesmo tempo e muitas vezes de modo inconsciente, algozes e vítimas.

São incontáveis as vezes que ouvimos a frase “perdemos tudo na enchente”. Impactados pelos eventos climáticos, cada vez mais frequentes e intensos, uns sentem incômodos na sua rotina cotidiana, outros perdem tudo – casa, bens, vidas, dignidade. O alarme de mudança é para todos, que precisamos reaprender a viver nesse cenário conflituoso das mudanças climáticas. Precisamos aprender a não violência com o planeta em que coexistimos.

As grandes cidades têm sido, ao mesmo tempo, fonte e lago dos efeitos do aquecimento global. A população sofre grandemente com os eventos extremos e profundas desigualdades. Quanto maior a cidade mais complexos são os problemas e as soluções. É o caso de São Paulo, cidade que tem, em si, muitas cidades, povos, situações.

Mas as grandes cidades também são berço de experiências e instituições inovadoras, públicas, privadas e da sociedade civil. Um desses empreendimentos notáveis e resilientes é a paulistana UMAPAZ – a Universidade Aberta do Meio Ambiente e Cultura de Paz de São Paulo, que, em 30 de janeiro de 2024, dia da não violência, completa 18 anos (Instagram: umapaz ).

A UMAPAZ busca acolher, incentivar e alimentar a capacidade de aprendizagem da população para as transformações necessárias, capacidade que já se mostrou extraordinária em outros momentos históricos. É uma escola livre, de educação informal, para pessoas de qualquer profissão ou atividade, idade, origem. Fica bem no coração de São Paulo, no Ibirapuera.

Lá, presencialmente ou on-line, as pessoas, encontram e escolhem, gratuita e livremente, atividades, cursos curtos e longos, eventos e oportunidades de reflexão conjunta sobre a transição climática e sobre os conflitos de interesses e visões numa cidade diversa e complexa.

O referencial ético dessa instituição é a CARTA DA TERRA, com a inspiração da filosofia da não violência. A Carta da Terra foi gestada especialmente a partir da ECO 92 (Conferência Mundial do Meio Ambiente realizada no Rio de Janeiro, em 1992) e adotada pela UNESCO, em 2000. Sua estrutura tem como princípio nuclear “o respeito e o cuidado com a vida”, articulando os eixos orientadores para sua prática: Integridade Ecológica, Justiça Econômica e Social e Democracia, Não-Violência e Paz (www.earthcharter.org).

A Carta da Terra parte de uma visão integradora e holística. Considera a pobreza, a degradação ambiental, a injustiça social, os conflitos étnicos, a paz, a democracia, a ética e a crise espiritual como problemas interdependentes que demandam soluções includentes. Ela representa um grito de urgência face as ameaças que pesam, sobre a biosfera e o projeto planetário humano. Significa também um libelo em favor da esperança de um futuro comum da Terra e Humanidade.” (Leonardo Boff, CDDH)

Como na perspectiva gandhiana da não violência, a paz não se refere apenas ao equilíbrio interior individual, mas também à paz social. Uma paz social ativa, não resignada, que reconhece os conflitos presentes na sociedade e busca soluções não-violentas para problemas coletivos, mesmo quando seus efeitos ainda não tenham alcançado diretamente a todos os indivíduos.

É o que o economista Albert Hirschman chamou de “emprestar a voz”, de modo que aqueles que, na sociedade, têm voz e muitas vezes saída, isto é, soluções para si próprios, possam emprestar essa voz àqueles que não têm nem saída nem voz.

Neste novo milênio, que já avança, além dos problemas crônicos, como a resolução de conflitos por meio de confrontos armados, a humanidade se vê frente a encruzilhada representada pelas mudanças climáticas. É hora de repensar, reaprender, experimentando o caminho do respeito à vida, o caminho da não violência.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.