Marcelle Chagas cria rede para levar talentos da periferia ao mercado de comunicação

Pesquisadora da Mozilla, a jornalista transformou uma inquietação diante da desigualdade em plataforma de impacto social

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Ela criou a Rede de Jornalistas Pretos Pela Diversidade na Comunicação, um ecossistema de auxílio. Foto: Divulgação

Quando ainda trabalhava em redações e assessorias de imprensa, Marcelle Chagas já experenciava um incômodo com a ausência quase total de jornalistas negros e de origem periférica ocupando esses espaços. Movida por seu trabalho como pesquisadora, ela criou a Rede de Jornalistas Pretos Pela Diversidade na Comunicação, um ecossistema de auxílio para aumentar a entrada e permanência desses profissionais no mercado. 

Antes de chegar até ali, Marcelle cresceu na periferia do Rio de Janeiro, onde se formou em jornalismo e começou a se aprofundar em estudos sobre mídia e acesso à informação. Ao longo de sua carreira, atuou como repórter para o Governo do Estado do Rio de Janeiro por seis anos e foi assessora de comunicação da Fiocruz.  

A inquietação com a falta de pluralidade coincidiu, em 2018, com uma intensa mudança política e social, em que o jornalismo ocupava papel central no debate público com o aumento da desinformação. Em meio às eleições presidenciais, a disseminação de informações nas redes sociais, a instabilidade da profissão e a ascensão da tecnologia, Marcelle buscou respostas nos estudos.

Começou com a conclusão de um MBA em Marketing e Comunicação Digital, seguido pelo mestrado em Comunicação e Estudos da Mídia pela Universidade Federal Fluminense. Imersa no ambiente acadêmico, percebeu a dificuldade de capacitação e inclusão de profissionais negros nos grandes veículos de informação e decidiu tomar uma ação. 

“Eu vinha da redação e via poucas pessoas parecidas comigo. Naquela época, eu ainda não entendia que isso fazia parte de um processo social muito maior”, relembra.

A criação da Rede JP

Fundada inicialmente para promover trocas entre jornalistas, a Rede de Jornalistas Pretos Pela Diversidade na Comunicação nasceu com a intenção de promover maior pluralidade. Através dela, foram realizadas conferências internacionais, cursos e encontros sobre diversidade, tecnologia e jornalismo, alcançando cerca de 15 mil pessoas.

Hoje, com o financiamento de editais e parcerias, a ONG já capacitou mais de 500 comunicadores em 200 veículos e tem atuação internacionalizada com a Caucus of Journalism, coalizão de jornalistas da diáspora africana presente em 55 países. 

E, em plena pandemia, lançou um dos primeiros cursos gratuitos para ensinar, tanto jornalistas como pessoas interessadas, a empreender utilizando comunicação e tecnologia. “Era um curso para que as pessoas conseguissem continuar suas ações de casa, mesmo que não fossem jornalistas”, conta. 

A ampliação do ecossistema 

Marcelle realizou parcerias com instituições gigantes, como a Unesco e a UFRJ para a realização de novos cursos e a criação da Repcone (Rede de Proteção Digital para Comunicadoras Negras) que, junto à Mozilla e à Folha Delas, recentemente lançaram o Guia Latino-americano de Proteção Digital. 

O programa une capacitação sobre segurança de dados com suporte jurídico e psicossocial através da parceria com a Associação Nacional dos Advogados Negros e já treinou 50 mulheres e financiou três bolsistas. 

Além disso, Marcelle passou a levar para debates institucionais diagnósticos, dados e pesquisas capazes de sustentar a importância da implementação de políticas públicas relacionadas à comunicação, diversidade e segurança digital. 

Entre eles, o Observatório de Gênero, Raça e Territorialidade, estudo conduzido pela pesquisadora e sua equipe a partir de imersões em quilombos, aldeias e periferias para entender a circulação e o consumo de informação em territórios periféricos. “Os territórios desenvolvem seus próprios mecanismos de defesa, mesmo que não sejam nomeados como programas de combate à desinformação”, explica. 

A chegada à Mozilla

A importância das análises e o impacto social do trabalho chamaram a atenção da Mozilla, organização internacional responsável pelo Firefox e por iniciativas de proteção digital e internet aberta. Marcelle foi selecionada como uma das dez pesquisadoras globais da instituição, ao lado de especialistas de países como Quênia, Hong Kong, México, Estados Unidos, Tunísia e Egito.

Hoje, ela atua com o programa GriôTech levando uma perspectiva da realidade do consumo de informação na América Latina para o exterior, como na conferência realizada no Instituto Universitário Europeu, na Itália. “É muito importante levar essas análises. Há lugares onde ainda não existe compreensão da profundidade das nossas desigualdades”, diz. 

Para Marcelle, todas as iniciativas, desde cursos, pesquisas e programas, têm o mesmo ponto de partida: necessidades reais. “As nossas soluções não surgem tecnicamente. Surgem de demandas reais, necessidades em momentos extremamente importantes”, conta. 

O novo braço de sua atuação

O ComuniHub, mais recente aposta de Marcelle, surge como o primeiro espaço brasileiro de comunicação concebido para conectar e ampliar o acesso de comunicadores de territórios historicamente invisibilizados ao mercado internacional. “A ideia nasceu para usar a tecnologia como ferramenta de transformação. Queremos que comunicadores de favelas, quilombos e territórios indígenas tenham voz, recursos e visibilidade global”, afirma.

A plataforma funciona como um ambiente digital bilíngue e colaborativo. Similar ao LinkedIn, permite a criação de perfis e portfólios. O diferencial, no entanto, é a proposta por trás: promover a conexão desses profissionais com organizações, projetos e vagas ao redor do mundo.

Além disso, conta com um Banco de Fontes bilíngue e o cadastro de organizações parceiras com formações, mentorias e bolsas voltadas ao desenvolvimento profissional. Até 2026, o plano de negócios prevê a conexão de mais de mil comunicadores em dez países, o financiamento de mais de 500 bolsas e a produção de relatórios multilíngues.