Mottainai é uma expressão da língua japonesa que pode ser interpretada como uma exclamação de pesar: “que desperdício!” Essa expressão embute uma filosofia que atribui valor intrínseco a cada objeto e, portanto, respeito a ele e às ligações entre todas as coisas vivas e as inanimadas.
Conceito popular no Japão, a filosofia Mottainai foi essencial para a sobrevivência e o crescimento do país. Existe até um jogo que leva o nome de Mottainai, onde cada jogador é um monge, em um templo, que executa tarefas, recolhe materiais e completa obras para os visitantes. As cartas do jogo podem ser usadas para muitas finalidades, mas sempre com o espírito do reaproveitamento, que é a sua essência. Qualquer pessoa pode adotar as práticas que integram o espírito Mottainai, como não deixar nenhum grão de arroz no prato: pegue porções pequenas, repita se necessário, mas não jogue fora nenhuma comida.

Precisamos do espírito Mottainai para refletir sobre o imenso desperdício de alimentos no mundo e no Brasil. Isso acontece mesmo com o alto preço com que os produtos chegam ao consumidor. É mesmo?

Verdade. É o que tem apurado pesquisa da ONU, que publica o Relatório Índice de Desperdício de Alimentos. O último relatório, publicado em março de 2024 (https://www.unep.org/pt-br/resources/publicacoes/relatorio-do-indice-de-desperdicio-de-alimentos-2024), mostra que, em 2022, foi desperdiçado aproximadamente 1,05 bilhão de toneladas métricas de alimentos. Isso representa cerca de um terço de toda a comida produzida. E o desperdício aumentou em relação ao Relatório anterior, com dados de 2019.

Onde ocorre toda essa perda?

Segundo o relatório, cerca de 40% da perda de alimentos ocorrem no processo de produção e distribuição, os outros 60% nos domicílios. E isso acontece tanto nos países de alta renda como nos de média renda. São muitos quilos de alimentos desperdiçados em cada casa.

Na cidade de São Paulo, que recolhe quase 11 mil toneladas de resíduos por dia, o serviço de limpeza urbana informa que quase metade desse total é composta por resíduos orgânicos – cerca de 35% são resíduos secos com possibilidade de serem reciclados e 18% são rejeitos. Se apenas os rejeitos fossem descartados não teríamos necessidade de tantos aterros.

Em uma atividade de que participei, a facilitadora disse que, se observássemos o que ocorre na nossa residência, veríamos quanto de alimentos desperdiçamos diariamente. Não vesti a carapuça, achei impossível e fui verificar. Infelizmente é assim. Perdemos muitos alimentos desde que entram na nossa cozinha. Estragam na geladeira ou nos armários, são mal aproveitados na preparação e, pior, sobram nas travessas e nos pratos. Finalmente são erroneamente depositados em lixeiras, quando deveriam ser compostados (conheça o guia prático de compostagem doméstica https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/subprefeituras/secretaria_executiva_de_limpeza_urbana/index.php?p=348124)

Quais são as consequências do desperdício de alimentos que não observamos com atenção?

A primeira questão é ética: tem gente passando fome bem ao lado desse grande desperdício de comida! A quantidade de comida produzida daria para alimentar a todos.

Outro relatório da ONU, em meados de 2023, indicou que aproximadamente 735 milhões de pessoas enfrentam fome no mundo. Em 2022, o Brasil voltou ao Mapa da Fome, do qual havia conseguido sair em 2014. O país tem 21 milhões de pessoas que não tem o que comer todos os dias e 70,3 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar – que enfrentam incertezas sobre sua capacidade de obter alimentos regularmente. São muitas as consequências que essa condição acarreta.

A outra questão é a grande contribuição do desperdício de alimentos para a severa crise climática que vivemos no planeta. De um lado, por contribuir para o aquecimento global: comida desperdiçada e descartada em aterros libera gás metano que, com o dióxido de carbono, exacerba o efeito estufa. De outro lado, junto com cada quilo de alimento descartado estamos desperdiçando todos os recursos naturais e humanos usados na sua produção e distribuição – o trabalho, a água, o esgotamento da terra utilizada no seu cultivo, a custosa distribuição por estradas que aumenta a poluição do ar, enfim, um círculo vicioso.

Na sociedade contemporânea, a sociedade líquida, como a denominou o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman, onde o valor de tudo é efêmero, passa e é substituído, o desperdício é a regra. Desde os eletrônicos com sua obsolescência programada, até as roupas que são trocadas e descartadas a cada estação ou modismo.

Minerais são recursos esgotáveis e sua extração promove grandes desequilíbrios socioambientais. Mas nem sempre nos lembramos dos componentes de nossos aparelhos celulares e outros quando os trocamos por novos modelos.

O descarte de peças de vestuário, por sua vez, promove desastres ambientais em grandes depósitos como no deserto do Atacama, no Chile, que virou um cemitério de roupas, consequência direta do mercado fast fashion, de acordo com a professa Francisca Dantas Mendes (EACH∕USP). Milhares de toneladas de roupas descartadas, parte sem uso, vindas da Europa, Ásia e América do Norte, criaram um “lixão” que pode ser visto do espaço! A ONU rotulou a situação, que libera poluentes no ar e na água e extingue a vida no ecossistema, como “emergência ambiental e social para o planeta”.

Isso sem falar dos inumeráveis objetos de plástico, produzidos a partir do petróleo, e cujas partículas inundam e destroem a vida nos oceanos e já invadem o próprio sistema circulatório humano. (“Estudo holandês detectou microplásticos no sangue humano” – Jornal da USP, 19 de maio de 2022).

O planeta é finito e a vida de todos os seres está conectada. A sociedade humana foi esgarçando essas conexões com os outros seres vivos que compartilham conosco a Terra: perdemos o respeito pelo valor intrínseco de cada ser e de cada coisa criada. Assim chegamos à situação de impasse socioambiental em que nos encontramos. Mottainai! Que desperdício!

O desperdício é um desafio global, que requer atenção e ação coletiva, além de práticas individuais cotidianas. E isso é especialmente importante em relação aos alimentos.

Um trabalho de iniciativa de mulheres que vale a pena conhecer é o Banco de Alimentos, que apareceu na Revista Forbes com o título: “Mulheres contra o desperdício de alimentos salvam vidas da fome”. O Banco de Alimentos é um trabalho de inteligência social, com o propósito de combater a fome e o desperdício, que nasceu pela visão da economista Luciana Chinaglia Quintão e se fortaleceu com esforços de cidadãos e parcerias com empresas e indústrias alimentícias. Desde 1998, a ONG Banco de Alimentos (bancodealimentos.org.br) recolhe alimentos que já perderam o valor de prateleira no comércio e na indústria, mas ainda estão aptos para consumo, distribuindo-os onde são mais necessários. Vinte e cinco mil pessoas são beneficiadas diariamente por esse trabalho.

O desperdício é uma forma de indiferença. Segundo Lucina Quintão: “A fome mata, mas a indiferença mata mais”. Ela demonstra que é possível ir da conscientização para a ação transformadora.