Por que, em 2024, ainda temos tão expressiva maioria das prefeituras e vereanças ocupadas por homens em um país onde mais de 50% da população é feminina e as mulheres são a maioria dos votantes?
Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista, afirma no seu blog que “as mulheres não têm direito à cidade porque não têm uma vivência plena e segura do espaço público”. Muitas das nossas cidades são feias, inseguras, cinzentas. E isso não se parece com a nossa cabeça feminina, com os nossos desejos.
Somos a maioria da população brasileira e representamos 52% do total de eleitores. Mas são mulheres menos de 20% das pessoas eleitas para comandar as 5.569 prefeituras do país.
Tem havido pequena melhora – cerca de 10%. Em 2020, segundo dados do TSE, tivemos 656 mulheres eleitas prefeitas. No domingo, 6 de outubro de 2024, 724 mulheres foram eleitas prefeitas. E há algumas mulheres disputando o segundo turno, em 51 cidades.
No entanto, os homens são 8 em cada 10 eleitos prefeitos, ocupando 4.746 cadeiras: 85% das prefeituras do país.
Como vereadoras, as mulheres representam quase 20% do total dos eleitos (19,9%). Também cresceu um pouco em relação a 2020, quando o percentual foi de 16% do total (dados do TSE). A vereança é muito importante, pois apresenta e analisa projetos de lei; apoia, modifica ou recusa propostas do executivo municipal e aprova o orçamento da cidade e, assim, a destinação das verbas.
Para refletir sobre essa desigualdade é importante lembrar que a nossa história forjou uma sociedade onde a mulher teve suas potencialidades e possibilidades minimizadas e os valores masculinos predominaram em vários aspectos, principalmente na vida pública. O antropólogo Roberto Gambini nos lembra que o povo brasileiro nasceu de mães nativas e africanas, submetidas com violência ou escravizadas pelo colonizador europeu.
A história foi sendo constituída e narrada, principalmente, a partir do olhar masculino, embora haja alguns olhares femininos, como o da historiadora Mary Del Priore, que tem recuperado a importante saga de resistência e luta das mulheres no Brasil, desde a época colonial.
As mulheres também estiveram alijadas da escola, especialmente do ensino superior, por muito tempo. O direito ao voto só foi alcançado pelas mulheres em 1933. É preciso sempre lembrar que gerações de mulheres lutaram e ainda lutam por direitos fundamentais ao longo da nossa história política.
Mas vemos mulheres compactuando com homens na defesa de sua submissão a eles, usando preceitos religiosos quando não a força bruta. O machismo não é tão somente um fenômeno masculino, mas abraçado e alimentado também por mulheres. Será que, neste século 21, algumas das mulheres, alçadas a cargos públicos, também não compactuam e até defendem esses valores, como temos visto em outras esferas de governo? E muitas vezes isso começa em casa, onde os homens, maridos, companheiros ou filhos são poupados de tarefas domésticas, naturalizando um comportamento sexista. No trabalho não é extraordinário que as mulheres deixem que suas iniciativas e conquistas sejam atribuídas a homens e se posicionem apenas como colaboradoras e não como protagonistas.
Em 2023, o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável) divulgou uma pesquisa feita em 80 países, incluindo o Brasil. ”Em relação à liderança e ao protagonismo político, 48% da população mundial respondeu que homens são melhores líderes políticos do que as mulheres”, segundo Viviane França, no texto “O machismo estrutural que afeta as mulheres” (em 18/06/2023, www.jonalofolha.com.br).
Nesse cenário, como poderá ser o desempenho desse conjunto de mulheres que conquistou cargos de vereança e de comando executivo das cidades? Quantos desafios terão de enfrentar ainda para demonstrarem, em seus atos, que se não são, necessariamente, melhores do que os homens, são certamente diferentes?
Nesse sentido, podemos refletir sobre iniciativas de mulheres que já tiveram mandatos e considerar seus projetos prioritários, muitas vezes postos em ação com muita dificuldade. O que elas já realizaram para que as cidades fossem lugares mais amigáveis para viver, para criar as novas gerações, para reiterar valores de convivência saudável e pacífica? Têm sido reconhecidas?
Em outubro de 2022, a ARUP (um coletivo de 16 mil projetistas, consultores e especialistas que trabalham em 140 países, dedicados ao desenvolvimento sustentável), o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável) e a Universidade de Liverpool publicaram um relatório chamado “Cidades Vivas: Planejando Cidades que Funcionem para as Mulheres”, reconhecendo que apesar das mulheres e meninas constituírem 50% da população urbana global, as cidades não têm sido planejadas com elas em mente.
As cidades foram e continuam sendo majoritariamente desenhadas, pensadas, por homens: o planejamento urbano, os transportes públicos, a ocupação solo, o destino das áreas verdes e até a segurança. Claro que há aí muito trabalho feminino, propostas feitas ou realizadas por mulheres, mas o que se vive ainda são cidades feitas, inseguras, cinzentas, hostis a muitas das necessidades das mulheres, para a realização das suas multitarefas, para a criação dos filhos e – é importante que se diga – para o cuidado com a natureza e com a beleza.
“E se as cidades fossem pensadas por mulheres?”, pergunta uma coletânea organizada por Laura Sito e Mariana Felix, publicada pela editora Zouk, que parte da análise de que as cidades se constituem como um espaço masculino, branco e heteronormativo, no qual diferentes grupos sociais vivenciam oportunidades desiguais. O livro busca trazer um olhar plural de mulheres que compõem a cidade: gestoras públicas, educadoras, periféricas, universitárias, de movimentos sociais, jovens, negras, trans – uma pluralidade de identidades que aponta para uma perspectiva feminista, antirracista e inclusiva. Outra reflexão importante vem da dra. May East, brasileira que vive pelo mundo, no seu livro “E se as mulheres projetassem a cidade?”, que será lançado em português no próximo dia 31 de outubro, no Instituto Goethe, em São Paulo.
Precisamos do olhar, dos sonhos, da energia e da vontade feminina no comando das cidades. E precisamos, por isso, apoiar as que já conseguiram chegar nas câmaras de vereadores e executivos municipais, para que sejam responsivas a projetos que promovam mais condições de bem-viver nas cidades.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da IstoÉ
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