Ela testemunhou o assassinato e a decapitação de milhares de homens, incluindo seis de seus irmãos. Mulheres mais velhas, como sua mãe, foram levadas, mortas e jogadas em valas comuns. As jovens, como ela, foram forçadas a se tornarem escravas sexuais. Neste contexto de tragédia e brutalidade é que surge a história de coragem de Nadia Murad, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz de 2018, e desde setembro de 2016 a primeira embaixadora da boa vontade para a dignidade dos sobreviventes do tráfico humano das Nações Unidas.
Tive a honra de participar de uma conferência com esta mulher fascinante e potente, uma iraquiana sobrevivente das atrocidades perpetradas pelo Estado Islâmico – grupo terrorista que em 2014 invadiu e devastou a cidade curda de Sinjar, no norte do Iraque. O vilarejo de Kocho, onde Nadia morava, também não escapou do massacre. A missão do grupo jihadista era a aniquilação sistemática dos yazidis, minoria étnico-religiosa curda não mulçumana, a que ela pertence.
Nadia Murad recusou-se a deixar impune o genocídio de seu povo. Não aceitou abandonar jovens mulheres que, como ela, foram submetidas à violência e transformadas em escravas sexuais, simplesmente por serem parte de uma minoria religiosa designada “herege” pelo grupo Estado Islâmico.
No Brasil, Nadia começou sua exposição discorrendo sobre a sensação de ser forçada a abandonar sua casa, após ver parte de seu povo e de sua família serem brutalmente assassinados ou levados pelos terroristas. Nas palavras da yazid, quando se é forçado a deixar o acolhimento de um lar, apenas com um punhado de estimados pertences, deixa-se para trás uma vida de ordem e inicia-se um violento universo de caos.
A sensação de dor que tomou conta da expressão de Nádia, o clamor em relação à passagem da ordem para o caos, me tocaram fortemente. Fui remetida de imediato às experiências vividas através do trabalho humanitário com vítimas de deslocamentos forçados. Essa dor característica, decorrente de uma situação de insegurança generalizada, essa falta de chão, fica ainda mais clara quando falamos de mulheres e crianças que precisam recomeçar sozinhas, que precisam navegar nas opressivas incertezas de uma nova vida longe de tudo que possuíam, com nada além de corações estraçalhados e olhos doloridos demais para chorarem.
Nadia entendeu, durante seu processo de fuga, que ela e toda sua comunidade haviam sido destituídos do bem maior que possuimos como seres humanos: uma vida digna. Viver em cativeiro é viver em um estado constante de ansiedade e incerteza. Você não sabe se no minuto seguinte estará vivo ou quais perigos enfrentará. Não há ordem, não existe rotina, não há possibilidade de seu corpo e sua mente relaxarem. Nunca se sabe quando ou como ocorrerá o próximo abuso ou por quantos homens será perpetrada a violência.
Após três meses de torturas e abusos diários, ela escapou de seus captores e conseguiu chegar em um campo de refugiados no norte do Iraque. Certamente foi um alívio para ela, mas o pesar, o caos, a incerteza não a abandonaram. O Estado Islâmico foi derrotado no Iraque, mas ficaram para trás um sem-número de pessoas, família, amigas e todo o peso de não saber onde e como essas mulheres estavam.
Nove anos se passaram desde o genocídio dos yazids. Não houve ainda responsabilização internacional dos culpados. Mais de duas mil mulheres raptadas continuam desaparecidas. Para Nadia, agir não é uma opção, é um dever.
Em sua primeira entrevista, ainda no campo, tomada pelo medo do terror de seus algozes, Nadia não mostrou a face. Ao final da sua fala, logo que os jornalistas a deixaram, ela compreendeu que, para sua história ser transformadora e alcançar ajuda necessária, para ser efetiva sua luta por justiça e paz, para que a violência sexual não seja uma arma de guerra, para tudo isso, mostrar o rosto seria imperativo.
Nadia nunca mais cobriu o rosto. Ela roda o mundo levando sua mensagem, não pelo simples fato de contar o que sentiu ou viveu, mas como forma de gerar consciência, como uma maneira de fazer da sua história pessoal, uma ferramenta, um trampolim para uma voz mais universal, para que, como no título da sua biografia, ela seja a última a sofrer tais atrocidades – The Last Girl.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.
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