De alguns anos para cá, o debate racial ganhou a mídia. E esse movimento se expandiu em paralelo com o aumento dos discursos autodefensivos:
        “Racismo existe, mas não sou racista”.
         A autodefesa vem sistematicamente acompanhada pelo discurso do lugar de conforto, ocupado por quem não é atingido pelas consequências nefastas de um sistema racista:
        “Não é problema meu e não tenho lugar de fala”.
         Mas será que não teríamos mesmo?
        A ocupação desse nosso lugar é uma escolha. Um compromisso que devemos assumir justamente pelo privilégio que a branquitude nos confere.
Não somente no 21 de março, no 13 de maio, no 16, 18 ou 20 de novembro*. Todos os dias, em todos os momentos. O ano inteiro. Especialmente longe dos holofotes.

O PACTO DA BRANQUITUDE

O conceito de “Branquitude” tem sua origem no início do século 20, nas obras de sociólogos, historiadores e outros intelectuais ligados a movimentos de igualdade social e racial que marcaram aquela época – como o americano William Edward Burghard (1868-1963), mais conhecido como W. B. Du Bois, e o psiquiatra francês Frantz Fanon (1925-1961).
Aqui no Brasil o conceito foi inicialmente apresentado nos livros do sociólogo Guerreiro Ramos (1915-1982), que publicou vários trabalhos sobre a crença segundo a qual pessoas brancas são lidas e entendidas socialmente como superiores e, portanto, merecedoras de ocupar um lugar de privilégio de forma natural e inquestionável.
Partindo daí, a psicóloga e ativista brasileira Cida Bento, um dos nomes mais lembrados quando falamos de branquitude, avançou na conceituação, tratando não só dos privilégios assegurados a pessoas brancas, em razão de sua cor de pele, mas também dos estratagemas existentes para sua manutenção. A isso a autora deu o nome, amplamente conhecido e repetido, de “pacto da branquitude”.
O conceito precisa ser entendido dentro de um contexto maior, para que possamos desenvolver o raciocínio que o liga diretamente ao racismo.
E antes que o discurso de negacionismo em relação a este lugar de posição privilegiada apareça, fazendo vir à tona o que se convencionou chamar de “fragilidade branca”, há algo que precisa ser pontuado: o privilégio pela cor de pele alcança todas as pessoas brancas, independentemente de suas escolhas individuais.
Sob uma outra perspectiva, poderíamos dizer que a branquitude seria como a argamassa que sustenta o racismo estrutural, tão falado nos dias atuais.

NOSSA VOZ COMO ALIADA

Depois de tentarmos compreender, com mais honestidade e conhecimento histórico, o conceito de branquitude e também o pacto de manutenção de privilégios do qual são signatárias as pessoas brancas, seria importante questionar se queremos e devemos continuar coniventes com esse sistema.
Na verdade, o verdadeiro entendimento de lugar de fala deveria nos levar para o mais belo dos propósitos: o uso da nossa voz e do nosso privilégio, e não ao nosso silenciamento.
O racismo é uma criação social. Não nasceu sozinho. Foi instituído por pessoas. Pessoas brancas. As mesmas que hoje dizem que o racismo existe mas, se questionadas se têm atitudes racistas, negam rapidamente, com medo de serem consideradas pessoas “más”.
O grande ponto a que devemos chegar é o entendimento de que levantar a voz e combater efetivamente o racismo não é papel somente de pessoas negras. Pelo contrário.
É necessário que coloquemos os atores sociais nos lugares reservados a cada um, para que passemos a entender o lugar de fala que cada qual ocupa, porque sim, lugar de fala é para dar voz, e não para silenciar.
Se de um lado não restam dúvidas de que o protagonismo da luta é o das pessoas negras, únicas que efetivamente sentem na pele os efeitos do racismo, precisamos entender que pessoas brancas também tem um papel importante em toda essa luta.
Não no protagonismo. No lugar de aliados.
Somos pessoas privilegiadas automaticamente e independente da nossa vontade, pelo simples fato de sermos brancos. Em todo e qualquer recorte social, a cor de pele sempre chega antes, e a nossa chega garantindo privilégios.
Temos um lugar de fala diferente daquele ocupado pelas pessoas negras. O lugar de pessoas que, privilegiadas, reconhecem o seu lugar, mas não aceitam mais agir no automatismo.
           Pessoas que utilizam o privilégio para questionar estruturas, mudar realidades, ainda que pequenas, nos ambientes que frequentam. Pessoas que trazem pontos de reflexão e que não entram em um só lugar sem se incomodar, ao se darem conta, por exemplo, da baixa ocupação do ambiente por pessoas negras como consumidoras.
A voz de pessoas brancas ressoa onde a voz negra, gritando a mesma coisa, não é ouvida.
Temos um lugar de fala, como aliados, não tomando a posição do negro, para falar em seu lugar, mas dando as mãos, para falarmos juntos.
*21 de março é comemorado o Dia Internacional contra a Discriminação Racial; 13 de maio é comemorada a abolição da escravidão; 16 de novembro é o Dia Internacional da Tolerância; 18 de novembro é o Dia Nacional de Combate ao Racismo; 20 de novembro é o Dia da Consciência Negra.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.