Fazia um calor escaldante, ninguém mais sabia se havia alguma estação, inverno ou verão, e da canga estendida na areia conseguia observar uma fumacinha evaporando quando a água batia nos cascalhos. Não tinha ninguém dentro d’água mas a faixa de areia estava lotada de gente. As pessoas se distribuíam em grupos que disputavam um espaço seguro entre poças pretas de petróleo ou algum lixo plástico derretido. Eu usava um biquíni, botas que protegiam meus pés, óculos de sol que cobriam metade do rosto e um pano resfriado enrolado na cabeça, além de ter todo o corpo coberto por uma pasta colorida de proteção. Embora o cenário parecesse desolador, as pessoas se divertiam e aproveitavam o pouco tempo contado que podiam permanecer ali na beira da água lodosa.
Esse sonho se repetiu inúmeras vezes quando eu era adolescente e lembro de acordar todos os dias com o mesmo pensamento, tentando entender como as pessoas ainda conseguiam ignorar o que acontecia: Não tem o que fazer, Carolina, você não pode brigar com o calor! A natureza está em chamas.
No início do mês fui participar de um evento sobre a crise climática em Manaus e a lembrança desse sonho que costumava chamar de pós-apocalíptico invadiu os meus pensamentos de forma vívida.
Os dias que passei em Manaus foram duros, o calor excessivo, a infinitude de informações de um Brasil até então desconhecido para mim – já tinha ido à floresta, mas não à cidade da floresta. A falta de verde e o excesso de fumaça.
Atravessando a maior seca em 120 anos, as entranhas da cidade incrustada na mata se mostravam por todo o lado. A fumaça da queimada invadia o quarto do hotel, era impossível dormir e era ainda mais impossível acreditar que aquela fumaça toda era natureza em chamas.
No segundo dia de evento acordei às 3 da manhã com um cheiro tão forte de queimada que demorei a acreditar que o hotel não estava pegando fogo. Cheguei a descer e procurar de onde vinha aquele cheiro de madeira queimando pois “não podia ser possível que viesse de onde vinha”.
Quando você pensa na Amazônia, a imensidão toma outra proporção: é muita terra, é tudo muito grande e é muita coisa acontecendo e sim… é muito fogo para fazer com que a cidade toda fique tomada pela fumaça. Ficou difícil respirar, no sentido literal e no sentido espiritual.
Enquanto a Amazônia para o homem da metrópole é um “pulmão”(como por muito tempo foi erroneamente definida), para os povos originários e ribeirinhos é a própria CASA. A floresta é o quintal e, como disse dona Maria Nice Machado (Quebradeira de Coco Babaçu): “Ninguém acerta na casa dos outros”.
“A maior parte das pessoas não conhece a história da Amazônia e em geral quem causa a crise climática é quem está propondo o debate sobre a crise climática”, como observou Elaíze Farias, uma das participantes.
Imagine que lá são faladas em torno de 180 línguas diferentes, há uma diversidade linguística que não consegue ser transmitida através dos nossos teclados convencionais, difícil até de preencher documentos.
Portanto o que vemos e experimentamos é uma cultura de exploração que, ao invés de olhar para a riqueza e respeitar o potencial e o tempo das coisas, parece estar viciada no modelo colonial pelo qual fomos formados.
“A Amazônia tem uma economia viciada no desmatamento”, como afirmou Beto Veríssimo, também participante do evento.
Já existe muita tecnologia desenvolvida e é impossível que não tenhamos ferramentas para mudar a postura diante da realidade. De tudo o que ouvi, posso afirmar que, até mesmo economicamente, temos possibilidades de gerar mais lucro através de iniciativas de preservação, porém estamos frente a “um problema de natureza ética”, conforme reforçou a ministra Marina Silva. Destaco aqui uma pequena citação para entendermos de forma simples:
“Os alimentos têm o seu próprio tempo. Não é possível comer laranja o tempo todo. Isso é para satisfazer nosso ego, nosso gozo.”
Lembrei também do papo que tive com a Letrux no videocast “Respire e Diga Sim”, quando falamos sobre a força da transmutação pelo fogo. Ela lembrou de um dos episódios espirituais mais importantes da sua vida quando, numa virada de ano, decidiu queimar os seus diários antigos e se reconhecer Letrux.
Simbolicamente o fogo tem esse poder, a transmutação. Não é à toa que uma boa bruxa sabe dominar uma bela fogueira até mesmo nas histórias infantis, porém no caso de Manaus, não estamos falando desse fogo – ou até poderíamos estar?
A verdade é que a floresta não depende de nós, nós é que dependemos da floresta, portanto de tudo o que se fala de crise climática e catástrofe ambiental chego à seguinte reflexão, como no meu sonho: o presente é uma natureza em chamas e o futuro, se for possível, precisa despertar agora.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.
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