Às vezes nos sentimos cansadas! É muita luta, por séculos de dominação e conquistas de direitos que, vez por outra, nos escapam. É como se entrássemos numa banheira de água morna e ela fosse esquentando, esquentando, sem que reagíssemos… O que era possível e até agradável no início revela-se fatal depois. É o processo do conformismo, que tem sido estimulado na sociedade atual, ordenando: concentrem-se na sobrevivência e em pequenos prazeres, afundem-se nas redes sociais e não perturbem a continuidade da ordem dominante.

As perdas, por vezes, são imperceptíveis a curto prazo, mas se acumulam rapidamente.

O alerta soou alto, especialmente depois da repercussão do Projeto de Lei 1.904 de 2024, pelo qual uma mulher estuprada, que faça aborto como previsto em legislação de 1940, terá uma pena de prisão como homicida e maior do que seu estuprador. Uma inversão, qualquer que sejam nossas crenças pessoais: como uma vítima pode ser mais penalizada que o agressor num país em que a cada 8 minutos uma mulher é vítima de estupro, 74,5% das vítimas são menores de 14 anos e os estupradores são parentes, conhecidos e, quase sempre, escapam impunes.

Não é possível deixar de perceber que algo está fora de lugar. Parece óbvio que, antes de tudo, o que esses números deveriam provocar era um verdadeiro clamor da sociedade contra o estupro, que, inclusive, reduziria o aborto.

A quem interessa a aprovação do Projeto de Lei, tão torto, que despreza a realidade que mulheres e meninas conhecem da forma mais dolorosa possível? Parece, ao contrário, dizer: mulheres, conformem-se, submetam-se à ordem masculina que prepondera no mundo.

O incentivo ao conformismo não atinge apenas diretamente a nós, mulheres, mas também a nossas filhas e filhos. Uma sociedade conformada, submissa, é o ideal dos que querem resguardar seus privilégios historicamente construídos.

No dia 19 de junho de 2024, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados colocou em pauta proposta que autoriza que adolescentes de 14 anos possam ser contratados como empregados. Hoje a lei define a partir de 16 anos. A proposta estava parada há 13 anos.

No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, definiu a adolescência dos 12 aos 18 anos incompletos. O ECA tem sido referência para a criação de leis e programas que assegurem direitos dessa população.

Uma garota ou um garoto de 14 anos já tem permissão legal, no nosso país, para ser aprendiz. É uma lei de 2000, que prevê que toda empresa de grande ou médio porte deve ter de 5% a 15% de aprendizes entre seus funcionários. O adolescente pode ser contratado como jovem aprendiz, por até dois anos, se estiver cursando ou concluído o ensino fundamental ou o ensino médio em escola pública. O propósito da Lei do Jovem Aprendiz é facilitar o ingresso do jovem no mercado de trabalho sem comprometer seus estudos.

Para Mário Volpi, do UNICEF no Brasil, em 2019: “A lei do aprendiz tem um duplo papel: dar acesso ao mundo do trabalho e promover o retorno à escola daqueles que abandonaram os estudos por ter que contribuir na renda familiar.”

Pesquisa mostrou que 68% dos jovens que participaram do programa conseguiram empregos no mercado formal . Em março de 2024 o Brasil atingiu a melhor marca mais de 600 mil jovens aprendizes contratados, mas ainda está longe de alcançar os 3 milhões de jovens que poderiam ser contratados pelas empresas.

No entanto, pela proposta em tramitação na Câmara dos Deputados, garotas e garotos de 14 anos já ingressariam no mercado de trabalho, como qualquer outro trabalhador. Assim estariam sujeitos às mesmas normas de um adulto e sem mecanismos de proteção específicas para essa faixa etária.

E nós, o que buscamos para nossas filhas e nossos filhos nesse momento tão delicado que é a adolescência, com suas grandes transformações biológicas e comportamentais?

Muitas de nós nos empenhamos para que nossos adolescentes tenham oportunidade de se dedicarem aos estudos e, quando possível, adquiram, nessa fase, outras habilidades que podem ser úteis para seu desenvolvimento e sua futura vida profissional. Estamos interessadas e incentivamos para que se aprimorem e ingressem em uma faculdade, inclusive porque sabemos que um diploma de curso superior viabiliza melhores trabalhos e remuneração.

Sabemos que quem tem curso superior, no Brasil, obtém remuneração média 144% acima dos que terminaram o ensino médio , tem trabalhos ou empregos com melhores condições. E, sobretudo, adquire conhecimentos que permitem exercer sua cidadania e defender seus direitos mais amplamente.

Ainda que, em parte das famílias, possa ser considerada boa ou necessária a possibilidade de que adolescentes se vinculem logo a uma ocupação regular, remunerada, certamente ainda queremos protegê-los de riscos e de exploração indevida.

Infelizmente o trabalho infantil e adolescente é uma realidade em todo o mundo e em nosso país, um resquício da mentalidade colonialista, que sempre penalizou os mais pobres: são os filhos dos menos favorecidos que foram e são explorados em trabalhos que lhes roubam direitos humanos e cidadania. Para as mulheres jovens adolescentes ainda há muitos outros riscos a que ficam expostas ao entrar, precocemente, em ambientes adultos, com regras feitas usualmente por e para homens, e costumes, como diferentes tipos de assédio, face aos quais ainda não têm ferramentas para se opor.

Então, a quem interessa esse projeto?

É nítido que há um movimento de pinçar projetos que têm potencial para prejudicar as mulheres e sujeitar os jovens por parte deste grupo majoritariamente masculino, branco, com raízes colonialistas e, recentemente, religiosas fundamentalistas. Isso reflete uma parcela da sociedade que é ultraconservadora e dá mostras de rejeitar elementos culturais que podem conflitar com suas crenças, inclusive a Ciência e, assim, a formação universitária.

No dia 18 de junho de 2024, circulou nas redes vídeo de um pastor jovem da Igreja Batista da Lagoinha, André Valadão, aconselhando seus fieis a não inscreverem seus filhos em faculdade. Diz no vídeo: “Criou sua filha para virar uma vagabunda ou para ser uma mulher santa, digna, de família, cheia de Deus? Aí ela tem um diploma e é rodada, é doida.”

Do mesmo lugar que vem esse ódio ao conhecimento, ao espírito crítico que atrapalha a manipulação, vêm, de braços dados, os interesses dos que preferem manter os pobres, os jovens, as mulheres como mão de obra barata e, de preferência, submissas e submissos, para que não perturbem os interesses e privilégios do andar de cima da sociedade.

Se as eleições e as redes sociais têm sido aproveitadas por esse grupo para reafirmar o conformismo e retirar direitos das mulheres e jovens, precisamos utilizar os instrumentos democráticos, as ruas e as redes para retomar esse espaço.

É preciso balançar esse mundo, para sobreviver.

“Eu não posso mudar o mundo, mas eu balanço, mas eu balanço o mundo…

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.