04/03/2024 - 16:53
Estamos vivendo por mais tempo, na era do Envelhecimento Global, como cravou a ONU, estimando que, em 2050, o mundo terá 1.6 bilhão de pessoas com 65 anos e mais, o dobro do número atual. No Brasil, a expectativa de vida, que era de 50,9 anos em 1950, hoje é de 76,2 anos, embora essa média varie por região e grupos da população.
Em 1950, mais da metade da população brasileira (52%) tinha entre 0 e 19 anos. O último censo do IBGE apurou que a população dessa faixa etária, população jovem, caiu para 40,2%. E a tendência da população jovem para os próximos 20 anos é de declínio de 13%. Impactos progressivos no mercado de trabalho e nos sistemas previdenciário, de educação e de saúde estão sendo previstos, a partir de estatísticas tão significativas.
Por vontade, condição de saúde ou necessidade, os idosos vêm se mantendo ativos na sociedade por mais tempo, trabalhando, muitos na informalidade, contribuindo ou até mantendo suas famílias, participando da produção cultural e de ações socioambientais e solidárias.
Pessoas que carregaram pela vida seus filhos e netos, ao envelhecerem temem adoecer ou se tornaram dependentes, transformando-se em um peso para eles. Expressando as contradições da sociedade, o etarismo carimba essas pessoas como peso social, incapazes, feias e ignorantes.
“Dá licença pra eu envelhecer?”
A exclamação é da atriz Betty Faria. Em entrevista há alguns anos, contou que foi dar um mergulho no mar, depois de um período adoentada, aproveitando um dia lindo. Ao sair da água foi fotografada. Bastou a foto cair na internet para receber comentários gentis como como “velha baranga de biquini”.
Modelada pela imagem culturalmente trabalhada e estimulada pela mídia, o que pega na nossa veia feminina é o desprezo pela aparência, pelo envelhecimento. Baranga é uma palavra dura, que ainda ecoa por aí, gíria para “de má qualidade, sem nenhum valor”! É dita para causar medo por rejeição, para reduzir o tamanho da pessoa, do que ela é no mundo, para o mundo.
A sociedade por trás da internet não dá licença para envelhecer, pelo menos não em público, não à luz do dia. E a data fatal para que as pessoas se ocultem ou tentem ocultar sua idade chega cada vez mais cedo.
Discriminação das pessoas em razão da idade e aparência, o etarismo alcança mais amplamente as mulheres, pela voz de homens e também de mulheres, neste tempo em que se busca debelar preconceitos que atravessam a sociedade.
Não é nova, mas mudou de foco. Durante largo tempo na história humana, o etarismo voltou-se contra as crianças, que não valiam nada, morriam precocemente, aos montes, vitimadas por doenças hoje passíveis de prevenção – e só eram consideradas quando pudessem trabalhar, o que começava extraordinariamente cedo. As meninas eram moeda de troca, uma boca a mais entregue, muito cedo, para trabalhar duro e submissa a outro grupo familiar.
Nem o trabalho nem os casamentos infantis foram totalmente debelados na sociedade contemporânea, extremamente desigual entre países e regiões.
A Universidade de Ohio (EUA) publicou pesquisa relacionando até mesmo o clima extremo ao aumento dos casamentos infantis – como um efeito colateral. “O que esses desastres exacerbam são problemas de desigualdade de gênero e de pobreza que levam as famílias ao casamento infantil como forma de enfrentamento”. Afirmou Fiona Dohety (https:∕ ∕news.osu.edu).
Em muitos lugares do mundo e também em nosso país meninas de 11 a 14 anos ainda são levadas ao casamento precoce ou à prostituição. E, em situações de conflitos armados e de desastres naturais, as mulheres e meninas são especialmente penalizadas, quer pela dificuldade em garantir a sobrevivência da prole ou pela violência sexual.
Já em segmentos social e economicamente incluídos, meninos e meninas são transformados em ícones de toda a esperança de futuro e, assim, quase reverenciados, inclusive pela sociedade de consumo, que não quer perdê-los como clientes fidelizados. As muitas telas se encarregam de apresentar os modelos desejáveis às crianças, para que sigam subservientes à lógica do consumo.
A juventude é igualmente supervalorizada e as pessoas se esforçam, extraordinariamente, para “segurar” o tempo e retardar o momento de esbarrar com o preconceito.
Nesse cenário, a idade pesa como uma ameaça ao desterro nas redes sociais, nas famílias, na sociedade, com muitas contradições.
A ciência conseguiu alargar o tempo da existência humana, porém a qualidade de vida não acompanhou o avanço, quer pelos efeitos naturais do envelhecimento, quer pelas condições socioeconômicas e ambientais ou ainda por estereótipos de beleza e saúde.
Nessa sociedade líquida, como já definiu o sociólogo Zygmunt Bauman, onde tudo passa rapidamente e é substituído pelo novo, inclusive as relações, o etarismo tem sido forte em relação a adultos e idosos e, especialmente, às mulheres – processo que, no caso feminino, é deflagrado mais cedo do que para os homens.
Em vários contextos, as fases das mulheres – menarca, menopausa – são motivo de etarismo misturado a sexismo, de preconceitos que se somam e penalizam seus alvos, empurrando-as logo à “melhor idade” – patético eufemismo.
Idosos com dificuldades, em um mundo tecnológico e apressado, são esquecidos ou são entretidos com babás e atividades infantilóides, mas sua opinião não costuma valer uma conversa. Uma das explicações, porém, tem tempo de validade.
Genericamente, a geração de 60 e mais tem maiores dificuldades com as novas tecnologias, que surgiram e avançaram quando já estava na fase adulta, mas isso tende a ser superado quando a geração de 40, que conviveu desde cedo com tudo isso, chegar aos 60.
Essa dimensão do etarismo, portanto, pode ser temporária. No entanto, os mais velhos continuarão atingidos pelo preconceito os excluídos da tecnologia – de todas as idades, os analfabetos digitais, talvez com mais dificuldades na existência do dia-a-dia do que os que não eram letrados em outras épocas.
Com o aumento da longevidade, de alguma forma, a humanidade de fato “segurou” o tempo. De outro lado, a taxa de natalidade está encolhendo progressivamente. Caminhamos para a inversão da pirâmide etária, com mais idosos e menos crianças e jovens no mundo? Puxa, como será isso?
Talvez seja hora de olharmos para figuras que envelheceram dedicadas ao bem comum e às quais provavelmente não importe o que a internet tenha comentado sobre a sua idade ou aparência.
Ute Craemer, uma alemã, de 86 anos, que veio jovem para o Brasil, ser professora Waldorf na zona sul de São Paulo. Ficou inconformada com a grande desigualdade entre os alunos da sua escola e as crianças da favela próxima e começou um trabalho de integração e respeito mútuo que gerou a Associação Monte Azul e a Aliança pela Infância no Brasil. (Ute Craemer – vida em movimento, uma escola do altruísmo, disponível no youtube). No seu aniversário, há poucos dias, Ute vibrava de alegria com um grupo da comunidade e de crianças que a homenageavam com cantos, dança e poesia.
Ruth Gottesman, ex-professora e membro do Conselho da faculdade de Medicina Albert Einstein, localizada no Bronx, em Nova York, EUA. Num mundo em que os super ricos são homens brancos, que acumulam sem parar e cuja fortuna se multiplicou inclusive na pandemia, essa mulher de 93 anos acaba de mudar a vida de todos os alunos de medicina daquela instituição americana, onde mais da metade dos estudantes se forma com uma dívida de financiamento de aproximadamente um milhão de reais. Ela doou US$ 1 bilhão (cerca de 4,9 bilhões de reais), que herdou do marido, investidor de um conglomerado de Warren Buffet, para custear as mensalidades de todos os alunos de medicina da universidade. E, sim, sua biografia indica que ela teve 3 filhos.
A nossa grande artista Fernanda Montenegro. Aos 94 anos, ela retorna às telas de cinema com Vitória, adaptado do livro “Dona Vitória da Paz”, do jornalista Fábio Gusmão, com direção de Andrucha Waddington, programado para estreia em julho próximo. E agora, já em março de 2024, volta ao teatro com 12 sessões presenciais de leitura dramática do clássico de Simone de Beauvoir, “A cerimônia do adeus”.
Mulheres como Ute, Ruth e Fernanda, de áreas e saberes diferentes, como tantas outras, fazem com que nos perguntemos qual é o peso da luz com que nos vemos, como na poesia do Mia Couto:
“Esse que em mim envelhece
assoma no espelho a tentar mostrar que sou eu
Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem
deixaram-me a sós, perplexo com meu súbito reflexo
A idade é isso, o peso da luz com que nos vemos”
(Idades.Cidades.Divindeades Lisboa: Ed. Caminho, 2007)
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