Nos cabelos castanhos, levemente ondulados e cheios de brilho de Marlete, como de costume há um grampo do lado direito, desnecessário, mas que lhe dá um toque especial e certa brejeirice. As mãos hábeis trabalham com rapidez entre os rolos, escovas, pentes, grampos e tesouras. Marlete é rápida, agitada, e até a manicura ela substitui, na falta ou no excesso de clientes.
O salão de beleza é pequeno, mas o movimento é grande na época de verão. A Doralice, sua filha de 14 anos, é a ajudante e manicure.
Aos sábados de noite Marlete é outra, só pensa em dançar. No final da tarde sua alegria já é contagiante.
Marlete casou garota ainda, 15 anos, marido ruim, apanhou muito. Marlete fugiu com a filha pequena. Mãe pela segunda vez, outro desastre, marido inútil. Agora a cabeleireira está só, cuida das filhas e trabalha e aos sábados à noite dança até não aguentar mais. Banho tomado, perfume forte, blusa cheia de brilhos, salto alto e a saia justa de seda dando o toque final. O samba a espera. A filha pequena dorme e a Doralice, vendo TV, observa discretamente a mãe.
“Tempos alegres”, pensa a cabeleireira, agora dona de seu próprio nariz.
A cabeça povoada de namoros e sonhos, vida boa. Cuida das filhas, paga suas contas.
A sorridente Marlene tem sempre um caso engraçado pra contar, e ao final completa com uma gargalhada gostosa de ouvir.
Um ano depois. Vou cortar a cabelo, no salão de Marlete.
Bato palmas, a menina Doralice vem ao meu encontro, cabelos tintos de ruivo e muito pintada, as roupas agarradas no corpo. A garota me olha e vai falando: “Não sei se ela pode atender, está cuidando do meu filho”.
Paro junto ao portão, quando um rosto se mostra na janela, é Marlete que diz: “Entra, mas vai ter que esperar um pouco, logo vou te atender”.
Passo junto da janela e vejo a cabeleireira segurando uma criança recém-nascida nos braços: “assim que eu terminar de dar essa mamadeira vou até aí.”
Entro na sala, alguns instantes depois chega Marlete e diz: “Você viu o que ela me aprontou? Mas defendi minha filha, não a deixei casar. O rapaz é garoto, ela só tem 15 anos, são duas crianças”. Ela toma fôlego e completa: “Assim foi melhor, ele nem quis saber da criança, eu registrei”,
Surpresa após um breve silêncio, digo: “É, o mundo mudou”.
Como se não tivesse ouvido, de imediato Marlete continua: “Estou doente, a médica diz que é o coração, não tenho mais vontade pra nada.”
Fico calada, nem sei o que falar.
Mas ela continua como se precisasse dizer tudo que estava pesando: “Estou fazendo uns exames para saber o que é essa dor no peito que me sufoca”.
Olho em volta e percebo um abandono em tudo. Junto ao espelho os objetos, escovas, pentes, presilhas e cremes, estão deixados ao acaso, não há mais o pequeno arranjo de flores ao lado da janela.
No chão, num pequeno colchão onde o garotinho sonolento está acomodado.
Observo melhor e vejo outra Marlete que surgiu, gorda, desleixada, cabelos tintos, de um loiro desbotado, vestido largo. Seu rosto mostra um olhar opaco, sem vida. As mãos lentas iniciam o trabalho sem entusiasmo. Meu olhar busca aquele grampo extra nos cabelos de Marlete, mas só vê a caixa aberta e eles espalhados a esmo…
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.
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