Lançado em 2016 pela emissora americana NBC, o seriado This is us conta a história da família Pearson, formada pelo casal Jack e Rebecca, grávida de trigêmeos. Logo no início, um dos bebês acaba morrendo no parto. Mas no mesmo dia do nascimento das crianças Kate e Kevin, um outro bebê, Randall, também recém-nascido, é resgatado pela equipe de bombeiros e deixado no hospital.
Comovido pela dor dos pais pela perda de um dos filhos, o médico sugere que o casal adote Randall. Solução fácil e rápida. Sem nem pensar em elaboração de luto, voltariam para casa com os três bebês aos quais Rebecca foi dar à luz. E assim foi feito.
Mas não se enganem. Não é assim que a adoção funciona. Se estivessem no Brasil dos dias atuais, Jack e Rebecca não teriam adotado Randall, e a história que arranca lágrimas e suspiros de telespectadores de todos os cantos seria bem diferente.
Deixando de lado as questões psicológicas, que são muitas, o primeiro ponto é a necessidade de prévia habilitação para adoção. Toda e qualquer pessoa, seja solteira, vivendo em união estável, casada, em uma relação hétero ou homoafetiva, ao se decidir pela adoção deve iniciar o procedimento de habilitação, que tramita na Vara da Infância e Juventude da comarca onde ela more.
O início do procedimento se dá pelo preenchimento de um pré-cadastro no site do Conselho Nacional de Justiça, e posterior entrega de documentos na Vara da Infância e Juventude, onde serão designadas entrevistas com psicólogo e assistente social, além de determinada a maneira como vai ser feita a “preparação para adoção”. Só depois desse processo a pessoa ou casal interessado será efetivamente inserido na tal “fila que não anda”.
A preparação para adoção é uma exigência legal, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente desde 2009, mas de forma genérica e sem estabelecimento de bases mínimas do que se trata e de como deveria ser feita. Como resultado, vemos realidades extremamente diversas no Brasil, o que acaba muitas vezes por prejudicar a formação e fortalecimento de vínculos, resultado de preparações deficitárias e superficiais.
Já a fila… bem, essa é assunto longo, que por muitas vezes é visto de forma simplista pela conjugação de dados numéricos que ganham a mídia. O desenho é o seguinte: existem atualmente no Brasil em torno de 4.500 crianças e adolescentes disponíveis para adoção, ao lado de mais de 35 mil pretendentes devidamente habilitados.
A conta não fecha e a queixa é recorrente: “a fila não anda”.
Muitos são os fatores envolvidos, mas a grande questão é que toda e qualquer ação, quando se pensa em adoção, parte do melhor interesse das crianças e adolescentes, e não das expectativas criadas pelos pretendentes habilitados.
Buscam-se famílias para quem já teve seus direitos negados e violados, e não o contrário. E as crianças e adolescentes reais, esses 4.500 citados ali atrás, muitas das vezes não se amoldam aos perfis de filhos desejados. Estamos falando de crianças acima de 5 anos de idade, grupos de irmãos, alguns com doenças graves, e uma maioria esmagadora de negros (aqui incluídos pretos e pardos).
Novamente, a solução não pode ser matemática. Não há que se fazer campanha para que as pessoas ampliem seus perfis para aceitar crianças mais velhas, adolescentes, grupos de irmãos, adoções inter-raciais e de crianças com doenças graves, entre outras opções. De um lado, o trabalho é pela desmistificação, quebra de tabus e idealizações – e de outro, pelo conhecimento dos vários aspectos de uma adoção real.
Adoção carrega em si inúmeras alegrias, associadas a diversos desafios, para os quais os adotantes devem estar preparados, como forma de assegurar efetiva proteção a quem já teve seus direitos mais valiosos atacados de alguma forma.
O que aprendemos com This is us? Muita coisa! Inclusive o que não é possível.
(link para pré-cadastro na fase de habilitação para adoção: https://www.cnj.jus.br/sna/indexPrecadastro.jsp)
(link para estatísticas de crianças e adolescentes e pretendentes: https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=ccd72056-8999-4434-b913-f74b5b5b31a2&sheet=4f1d9435-00b1-4c8c-beb7-8ed9dba4e45a&opt=currsel&select=clearall)
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.
Veja Também
O racismo do algoritmo: como a rede pode reforçar preconceitos
Direito às origens: o encontro do filho adotivo com a família biológica
Julho das Pretas: para mudar o país onde só 3% dos cargos de liderança são ocupados por mulheres negras
PL do aborto: por que a adoção não é justificativa para a gestação, em caso de estupro
Ajustar a expectativa dos pais com o perfil das crianças é um dos desafios da adoção no Brasil