A humanidade tem posto algumas ideias “obsoletas” na geladeira e trazido à luz outras que parecem novas, como a de que precisamos de liberdade total, que não termina onde começa a liberdade do outro, ou nos dá passe livre para perseguir o sucesso, a beleza, a riqueza, o poder a qualquer preço, ou um modelo novo de qualquer coisa a toda hora. Fico refletindo no quanto toda essa obsolescência é programada – afetando não apenas os produtos. E você, o que pensa sobre isso?
A “obsolescência programada ou planejada nasceu como um processo de produção com vida útil economicamente curta, fazendo com que os clientes façam compras repetidas durante todo o ciclo do produto”, afirma o professor Leonardo Geraldo de Oliveira, do Departamento de Tecnologia do Design da UFMG.
A ideia de produtos fabricados que sejam rapidamente renovados, substituídos e estimulem o consumidor a comprar novamente parece ter sido gerada na década de 1920, para recuperar a economia. A história registra a formação do primeiro cartel mundial, o Cartel Phoebus, em Genebra, com a participação dos principais fabricantes de lâmpadas da Europa e dos EUA, reunindo a General Eletric, Osram, Phillips e Lâmpadas Teta. Eles decidiram reduzir a expectativa de vida útil das lâmpadas de 2.500 horas para 1.000 horas. Consta que existia o desenvolvimento de uma lâmpada de 100.000 horas, que nunca chegou ao mercado.
Houve momentos da história em que foi o contrário. As pessoas tinham orgulho da conservação, em perfeito funcionamento, de bens, aparelhos e utilidades domésticas que ostentavam grande durabilidade, comprados há bastante tempo ou recebidos por herança. Isso passou. Hoje, com exceção das chamadas antiguidades de valor, as coisas ficam apenas velhas e é preciso explicar porque ainda não foram substituídas. Não é porque você não quer, é porque você não pode, não conseguiu…
Quando o aparelho emperra, apesar da reposição de peças estar prevista no Código do Consumidor, é comum se ouvir “vale mais a pena comprar um novo”. Como numa economia internacionalizada muitos produtos são importados, a reposição de peças pode ser de fato muito cara ou muito demorada.
Para o prof. Oliveira é possível distinguir três tipos de obsolescência programada: a artificial, a tecnológica e a psicológica.
A obsolescência artificial é aquela que vem do próprio projeto do produto, da intenção prévia de se estabelecer a vida útil de um produto antes mesmo da sua fabricação. Assim é gerado um produto já com a definição do término do seu ciclo de vida, para que ele se torne obsoleto, de modo a que “valha mais a pena comprar um novo”.
A obsolescência tecnológica não é propriamente programada, mas estimada. Ela se relaciona com a evolução da pesquisa científica e tecnológica, quer para o incremento ou diversificação da capacidade dos produtos ou para sua substituição propriamente dita. As empresas dedicam recursos para as pesquisas para terem novidades para o consumidor e parece mais interessante que essa novidade signifique o descarte do produto anterior e a compra de um novo.
A mudança na funcionalidade pode ser pequena, mas a embalagem certamente será diferente e todo o marketing do produto também, o que nos leva para a terceira dimensão: a obsolescência psicológica.
É muito abrangente a obsolescência psicológica dos produtos, que diz respeito à camada de contato, a interface, entre os produtores e os consumidores. O fascínio pelo novo e o desprezo pelo velho são estimulados para que os outros dois tipos de obsolescência funcionem. Os fabricantes tentam fazer crer – e consumidores querem acreditar – que o novo é sempre melhor do que o anterior, em várias dimensões, embora, muitas vezes, as diferenças sejam insignificantes. Na dimensão psicológica, além das chamadas “novas funcionalidades”, o produto serve também como afirmação do poder de compra e, até mesmo, de ostentação. Isso é muito fácil de observar na sucessão impressionante de aparelhos celulares, ano a ano. E das filas para adquiri-los!
Do ponto de vista da economia tradicional é um pressuposto que produtos duráveis reduzem o consumo, a renda das empresas, os empregos e as economias dos países. Entretanto, há impactos da economia da obsolescência que, atualmente, é inevitável considerar: o aprofundamento da desigualdade social, a criminalidade e o dano ao meio ambiente.
Em relação à desigualdade social, a obsolescência impõe severas restrições às populações economicamente mais vulneráveis, que fazem grandes esforços para comprar bens duráveis, que rapidamente ficam obsoletos, com consertos e peças caros.
A obsolescência estimula o comércio paralelo e cria espaços para práticas ilegais, como as de desmanches de aparelhos roubados e o estabelecimento da criminalidade no negócio.
Do ponto de vista ambiental, a obsolescência e o estimulo a novas compras é parte ativa do caos socioambiental em que nos encontramos, pois contribui para esgotar recursos não renováveis ou renováveis a longuíssimo prazo, como minerais e vegetais. O garimpo de minerais tem causado severos e por vezes irreparáveis danos socioambientais. Uma floresta pode ser replantada, mas as novas plantas demorarão décadas para prestar os mesmos serviços ambientais para a saúde ambiental e humana.
É mais barato para as empresas retirarem matéria prima da natureza para novos produtos do que reciclar, reaproveitar, regenerar, como recomenda a economia circular, regenerativa . A economia circular não é uma miragem, existem indústrias trabalhando a sustentabilidade nessa perspectiva .
O consumismo, na perspectiva da obsolescência, enche o mundo de resíduos tóxicos, poluentes e microplásticos que estão por toda a parte, inclusive no sangue humano. São montanhas de lixo pelo planeta, poluindo o solo, os oceanos, o ar, a água e o alimento. É o desperdício, o mottainai de que nos alertam os japoneses, eles próprios imersos no consumismo tecnológico do mundo atual. Demoramos para perceber que não existe o “fora”, que jogar fora é jogar para dentro de nós próprios, seres vivos que dependemos das florestas em pé, da água limpa, do alimento sem veneno. E continuamos jogando “fora”.
A crise ambiental, com o aquecimento global resultante, com todos os desastres socioambientais que já estão acontecendo e os anunciados, nos obrigam a repensar essa caminhada insensata da humanidade – uma solução transitória que se tornou permanente e modelo dessa chamada pós modernidade.
Mas, porque a afirmativa inicial de que a obsolescência programada também alcança pessoas e ideias?
Há pouco refletimos sobre etarismo nesta coluna. A reverência ao novo implicou o desprezo ao velho em várias dimensões. E como o novo não demora para crescer, como no mundo da vida, ele, hoje, é uma sucessão muito rápida de modelos, aparências, isso também ocorre com as pessoas, entre as pessoas e com as relações. Embora vivamos muito mais anos, ficamos obsoletos muito rápido para a imagem, para o trabalho, para o marketing, para as redes sociais.
As gerações “sanduiche”, entre os que estão no desabrochar e os que tem cabelos brancos, é a mais pressionada, porque tem que se reinventar sem parar, na aparência física, nas profissões, nas relações familiares e de amizade – com modelos que se sucedem vertiginosamente.
Trocamos de trabalho, de família, de hobbies… Carregamos conosco os mais jovens e os mais velhos, uns que estão em formação, outros dos quais já não ouvimos a voz: opinião obsoleta. Essa tentativa esgota as pessoas, cansadas de tentarem se adaptar, ter sucesso, gerenciar uma carreira pessoal as suas próprias custas (como pessoas jurídicas), as suas relações… Como se fossem empresas que apenas pudessem ter sucesso, dar lucro, fugir da falência. Até os hobbies e o tempo livre acabam mergulhando nos modismos, da academia, dos restaurantes, dos passeios. São mostradas nas redes, como se fossemos produtos que precisam de likes, como antes de beijos e abraços. A Inteligência Artificial já fez um dano irreparável e nem percebemos direito. Tanto esforço para não ser obsoleto, para não ser um iphone de modelo antigo!
Tudo está estreitamente interrelacionado. Permitimos que algumas ideias ficassem obsoletas. Temos até uma certa discrição em enunciá-las: comunidade, solidariedade social, ajuda mútua, proteção à natureza, paz social, objeção de consciência… Parecem conversa de perdedor?
Mas será que os ativistas ambientais são mesmo aqueles desajustados ali, que ficam abraçando árvores? As pessoas que se dedicam ao trabalho social e comunitário, são de fato as que não deram em nada? Se a democracia pode ameaçar os privilégios do punhadinho mais integrado da sociedade, então é mesmo melhor pensar em outras alternativas e deixar os diferentes de fora? O Musk e outros donos de plataformas da internet são mesmo paladinos da liberdade, apesar dos riscos das mentiras e dos discursos de ódio que circulam livremente nas redes sob perfis falsos? Nada de regulamentação como qualquer outra atividade? Os danos sociais e ambientais são mesmo efeitos colaterais inevitáveis nessa nossa civilização?
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