Em meio a tantas notícias duras que têm marcado o Brasil nos últimos tempos, uma vitória merece destaque: a aprovação, no Congresso, de quatro projetos da Agenda Legislativa do Pacto Contra a Fome.
O movimento começou em 26 de agosto, em Brasília, quando parlamentares, ministros, empresários e lideranças da sociedade civil se reuniram para o pré-lançamento da agenda. Essa iniciativa inédita revisitou vinte anos de propostas apresentadas no Congresso e destacou sete projetos de lei com real potencial para transformar a segurança alimentar do país. Mais do que política, ela simboliza um novo modelo de atuação coletiva: uma filantropia multissetorial aliada a um advocacy forte no setor público, na qual empresas, governo e sociedade civil se unem para enfrentar a insegurança alimentar e repensar o futuro social do Brasil.
A urgência do tema
O Brasil, mesmo sendo uma potência agrícola mundial, ainda convive com a contradição da fome. Segundo a PNAD Contínua (IBGE, 2024), 8,7 milhões de brasileiros vivem em insegurança alimentar grave, e 1 em cada 3 pessoas enfrenta algum nível de restrição de acesso a alimentos. O quadro se agrava diante do desperdício anual de 55 milhões de toneladas de comida no país.
Esse paradoxo foi chamado por especialistas de “a incoerência brasileira”: abundância produtiva convivendo com escassez no prato. A Comissão The Lancet, em relatório de 2019, já alertava para a “sindemia global” onde a má nutrição ameaça a saúde e o desenvolvimento de populações.
A força da união
É nesse contexto que nasce a Agenda Legislativa “Da Política ao Prato” formulada pelo Pacto contra a Fome. Mais do que um compilado técnico, ela é resultado de um processo coletivo: foram 1.915 proposições mapeadas no Congresso, 208 analisadas em detalhe e 7 selecionadas como estratégicas.
Na semana seguinte ao pré-lançamento, a Câmara dos Deputados aprovou em plenário quatro desses sete projetos prioritários: a institucionalização do Pronaf, a priorização de municípios em situação de calamidade no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), a inclusão da gestão de riscos climáticos na Política Nacional da Agricultura Familiar e o uso de indicadores oficiais do IBGE para orientar políticas de segurança alimentar.
A aprovação reforça a força política da pauta e comprova a capacidade de mobilização multissetorial que esse tipo de inciativa representa. Como destacou o presidente da Câmara, Hugo Motta, trata-se de um passo decisivo para que o Brasil possa, de uma vez por todas, “sair do Mapa da Fome e da insegurança alimentar”.
Um novo tipo de filantropia
O que diferencia esta iniciativa é o modelo que a sustenta: uma filantropia conectiva e estratégica, que vai além da doação pontual e busca estruturar políticas públicas duradouras. O Pacto Contra a Fome atua como catalisador de ecossistemas, mobilizando governos, empresas, sociedade civil e academia em torno de soluções de longo prazo.
Esse é um novo desenho de ação social, em linha com tendências globais: segundo estudo da Harvard Kennedy School (2023), colaborações público-privadas ampliam em até 40% a efetividade de políticas sociais em comparação a iniciativas isoladas. O World Food Programme, por sua vez, reforça que parcerias entre Estado e setor privado são “determinantes para alcançar o ODS 2 — Fome Zero até 2030”.
Um futuro de escolhas
Como advogada humanitária e empreendedora de impacto, acredito que enfrentar problemas sociais complexos, como a fome, exige união real entre setores. Não se trata de responsabilidade de um único ator, mas de uma missão compartilhada que define o futuro ético de uma sociedade.
O lançamento da Agenda Legislativa é um chamado: erradicar a fome não é utopia, é decisão política, social e empresarial. Como já dizia Josué de Castro, pioneiro da geografia da fome no Brasil: “A fome não é um fenômeno natural, mas sim social. Ela é uma doença do corpo social que tem cura.”
Hoje, temos as ferramentas, os dados e a cooperação necessária para curá-la. A pergunta que resta é: teremos também a coragem?
Para além da fome: um pacto civilizatório
O lançamento da Agenda Legislativa do Pacto Contra a Fome e a rápida aprovação de quatro de seus projetos prioritários representam uma conquista que transcende a pauta alimentar: são a semente de um novo pacto civilizatório, que exige cooperação intersetorial e responsabilidade compartilhada. Estudos sobre políticas públicas no Brasil já demonstram que apenas ações articuladas entre legislativo, executivo, setor privado e sociedade civil têm força para romper o ciclo da pobreza e da insegurança alimentar de forma duradoura.
Essa agenda toca em justiça social, sustentabilidade e no modo como escolhemos nos organizar enquanto país. O combate à fome é uma oportunidade de provar que somos capazes de unir forças em torno do mais básico e inegociável dos direitos: o direito à vida digna. E talvez a maior mensagem que fique seja esta: em meio a tantas pautas duras que dominam o noticiário, o Brasil tem, sim, vitórias a celebrar. Cada passo dado na luta contra a fome é mais do que uma política pública, é a prova de que ainda sabemos escolher a esperança.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.