O que é Gaza para uma mulher? Uma prisão em grande escala, região costeira com cerca de 40 quilômetros entre o mar Mediterrâneo, Egito e Israel, Gaza se tornou um nome midiático sinônimo de caos. Um lugar onde a violência se acumula até transbordar e explodir. Violência que está sempre ali, abafada, integrada às casas como um membro da família, um hóspede indesejado que não se sabe quando irá partir.
Em Gaza, a presença da morte paira continuamente nas paredes cobertas por retratos de mártires e slogans religiosos. As mulheres sorriem raramente, têm pouco para celebrar e, se tivessem, seria indecente. Todas elas, exceto as que não temem a morte, se escondem sob o seu hijab. Foi tirado delas o que há de mais forte na essência feminina, a liberdade de escolha.
No final do ano de 2003, durante a segunda intifada, atuei em uma ação humanitária no território palestino, mais precisamente no Campo de Jenin, no norte da Cisjordânia, e tive a oportunidade de conhecer Gaza. De todas as minhas experiências pelo mundo foi a mais dura – por ali o cheiro que senti foi o da morte.
Gaza é hoje o lar de mais de 2,2 milhões de pessoas – desse total, mais de 1,7 milhões são considerados refugiados que começaram a ser deslocados à força em 1948 com a criação do Estado de Israel e posteriormente, em 1967, quando após seis dias de guerra o território israelense mais que triplicou de tamanho, saltando de 20.720 Km2 para 73.635 Km2.
O deslocamento forçado é uma constante na vida dos palestinos de Gaza que sofrem sem trégua com conflitos contínuos e ocupações violentas. Além disso, os bloqueios e as restrições ao acesso a terras agrícolas e áreas de pesca neste território causaram o subdesenvolvimento da economia palestina que recrudesceu a crise humanitária, exacerbando as já deterioradas condições sociais, educacionais e de saúde. Segundo a FAO a insegurança alimentar moderada e severa atinge mais de 70% da população total da Faixa de Gaza.
Após o término da segunda intifada, diante de um cenário de destruição, vidas perdidas e pobreza extrema, o Hamas ascendeu e tomou o poder na Faixa de Gaza, expulsando para a Cisjordânia os integrantes do Fatah, partido do atual presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas. Como forma de retaliação, nos últimos 10 anos, várias operações militares brutais foram realizadas por Israel contra os residentes da Faixa de Gaza, gerando mais ondas de deslocamento entre os civis.
As cicatrizes são visíveis, Gaza se tornou um amontoado de prédios, incluindo casas, hospitais e escolas, reduzidos a escombros, milhares ainda vivendo em acomodações temporárias e um sem número de famílias sobrevivendo em escombros de construções danificadas por balas e bombas.
É neste cenário que falo de mulheres que vivem à margem de uma sociedade que foi sendo, a partir da criação do Estado de Israel, dizimada, asfixiada a conta gotas. Em uma equação impossível de ser solucionada, onde poder e religião se misturam, depois das crianças as mulheres são, sem dúvida, as que mais sofrem. Elas são submetidas ao fardo de dois sistemas que as subordinam: a violência da ocupação israelense e o radicalismo do patriarcado islâmico. A ocupação mina a capacidade dessas mulheres de lutar para transformar as estruturas patriarcais de desigualdade de gênero.
Entre as violências sofridas pelas mulheres de Gaza, algumas saltam aos olhos como o impacto dos postos de controle, bloqueios e toques de recolher. Entre as consequências mais graves desses checkpoints, que impedem a livre circulação dos palestinos, a cena de uma mulher grávida dando à luz ou sendo recebida de forma violenta pelos soldados israelenses é comum para quem visita Gaza. Ao desespero dessas mulheres que têm negado o direito de parir em lugar seguro e o acesso a cuidados médicos somam-se medo e ansiedade, o futuro destes bebês está fadado a duas únicas opções: a miséria ou cooptação pelo jihadismo.
Sujeitas à pressões e à violência dos conflitos, as mulheres palestinas têm poucos mecanismos que garantam sua segurança. Quanto maior a ameaça externa, maiores são os problemas ligados ao gênero dentro de um sistema patriarcal que favorece formas institucionalizadas de violência familiar, casamentos forçados ou precoces, e a poligamia.
Mulheres cujos maridos foram mortos no conflito muitas vezes são obrigadas a se casar com o cunhado ou familiares próximos, especialmente quando têm filhos. A dificuldade das famílias em cuidar de uma mulher sozinha com filhos também desencoraja o divórcio, sem mencionar a vergonha associada ao status de divorciada.
O aumento do desemprego e da pobreza representa um fardo crescente para as mulheres, as limitadas perspectivas de educação para as meninas mina oportunidades de desenvolvimento e de transformação, dentro de um sistema machista onde uma mulher não tem direitos frente ao homem. O crescente isolamento devido às restrições de circulação se transforma em outro destruidor de sonhos que caminha lado a lado com a destruição física e psicológica dos lares de Gaza.
Durante minha visita a Gaza, em 2003, conversando com uma das funcionárias da ONG parceira local, na época mãe de um menino com graves deficiências mentais perguntei: qual o seu sonho, Hadiya? Seus olhos encheram-se de lágrimas. E ela disse eu não tenho tempo para sonhar, a vida aqui é muito, muito difícil! Vinte anos depois, eu me pergunto: o que me responderia uma mulher de Gaza se hoje eu lhe perguntasse sobre seu sonho?
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.
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