Os desastres ambientais, como os no Rio Grande do Sul, tornam as populações mais vulneráveis a crimes, como assinala o relatório publicado pela Organização Internacional das Migrações (OIM) – “Tráfico de pessoas no contexto de degradação ambiental no Brasil”.

Além das perdas materiais, sonhos e vidas solapadas pela catástrofe no estado sulista, as pessoas enfrentam infestações de bichos peçonhentos, doenças graves como tétano, leptospirose, pneumonia, dentre outras. Uma conjugação mórbida que arrasa a saúde, o emocional e facilita até o tráfico de pessoas.

O relatório da OIM aponta que a degradação ambiental, que envolve a redução da capacidade do meio ambiente em atender às necessidades sociais e ecológicas, tem sérias repercussões na frequência e intensidade dos desastres naturais. Essas mudanças, em conjunto com a deterioração causada por atividades humanas como uso inadequado da terra, erosão, desertificação, incêndios florestais, perda de biodiversidade, desmatamento, destruição de manguezais, poluição e elevação do nível do mar, comprometem a saúde dos ecossistemas e a qualidade de vida das populações. Esse comprometimento aumenta a vulnerabilidade das comunidades, influenciando inclusive o risco de tráfico de pessoas.

O impacto da degradação ambiental na mobilidade humana é significativo, diz o estudo. Urbanização rápida e não planejada, crescimento populacional, pobreza, desigualdades, conflitos e má governança são fatores de risco que intensificam as necessidades das populações afetadas, criando um terreno fértil para a exploração por parte de traficantes de pessoas.

As vítimas podem ser deslocadas de áreas rurais para urbanas ou vice-versa, buscando abrigo, ou podem migrar para regiões empobrecidas e de difícil acesso, onde a ausência de políticas públicas agrava sua vulnerabilidade. Assim, a degradação ambiental não apenas compromete o meio ambiente, mas também exacerba problemas sociais e humanitários, incluindo o comércio de seres humanos.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em seu Parecer Consultivo nº 23 sobre Meio Ambiente e Direitos Humanos, destacou que certos grupos enfrentam de maneira mais intensa as degradações ambientais devido às condições de vulnerabilidade ou a circunstâncias específicas, geográficas e econômicas. Entre esses grupos estão os povos indígenas, crianças e adolescentes, mulheres, comunidades que dependem dos recursos naturais e grupos historicamente discriminados.

Além desses, outros grupos vulneráveis ao tráfico de pessoas incluem comunidades quilombolas, povos ribeirinhos, pessoas LGBTQIAPNA+, idosos, pessoas com deficiência e em situação de rua. O relatório chama atenção para não generalizar ou homogeneizar as realidades desses grupos, pois os impactos dos danos ambientais variam em intensidade e forma, de acordo com características como território, raça, etnia, gênero, orientação sexual, classe social, idade, presença ou ausência de deficiências, religião e nacionalidade.

Reconhecer essas diferenças é essencial para compreender como a degradação ambiental e os riscos associados ao tráfico de pessoas afetam de maneira diversa cada grupo, permitindo a formulação de políticas públicas mais eficazes e inclusivas para mitigar esses impactos e proteger os direitos humanos dessas populações vulneráveis.

Os desastres ambientais podem expor crianças a situações de insegurança, traumas psicológicos e ao risco de violência emocional, física e sexual, principalmente quando desacompanhadas. As crianças podem enfrentar dificuldades no acesso à assistência médica, à educação e aos meios de subsistência, de forma que estes cenários são capazes de criar um contexto no qual o tráfico de pessoas pode prosperar.

Na legislação brasileira, o tráfico de pessoas cometido contra criança e adolescente tem sua pena aumentada de um terço até a metade. Há situações em que a própria família, rede de cuidado ou pessoas próximas aliciam as crianças para explorações. No entanto, é possível também observar casos em que as famílias não sabem que seus filhos e filhas acabarão nas mãos de traficantes, que prometem falsamente uma vida melhor, educação e oportunidades de vida.

Os impactos das catástrofes ambientais agravam as desigualdades existentes na população LGBTQIAPN+. Esta sigla refere-se a pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, intersexuais, assexuais e demais identidades de gênero e orientações sexuais que não se enquadram no padrão heteronormativo, papéis de gênero socialmente construídos, nas responsabilidades e nas dinâmicas de poder que tendem a prejudicar as mulheres.

As meninas também são afetadas de maneira desproporcional por enfrentarem maior probabilidade de serem retiradas da escola para assumir responsabilidades domésticas, cozinhar e cuidar da família, inclusive em famílias afetadas pelos efeitos adversos da degradação ambiental. Além disso, como forma de lidar com os impactos econômicos das degradações ambientais nos meios de subsistência das famílias, meninas podem ser submetidas ao casamento infantil, expondo-as a riscos de gravidez na adolescência e prejudicando sua saúde, educação e perspectivas de futuro.

O estudo destaca ainda que a degradação ambiental pode impulsionar a violência baseada em gênero, incluindo agressão sexual, violência doméstica e prostituição forçada. A busca desenfreada por recursos cada vez mais escassos pode exacerbar essas formas de violência. A violência sexual e de gênero afeta de maneira diferenciada a população LGBTQIAPN+.

Análises do UNODC revelaram que 74% dos transgêneros detectados como vítimas de tráfico de pessoas entre 2017 e 2020 foram explorados sexualmente. Já a pesquisa realizada em 2023 pelo The Freedom Fund aponta que só no estado de Pernambuco cerca de 20 mil crianças e adolescentes são explorados sexualmente. A trajetória desses seres humanos, marcada por discriminação, violência e negação de direitos, torna-os suscetíveis aos traficantes, especialmente em casos de exploração sexual comercial e trabalho escravo.

Outro estudo realizado pelas Nações Unidas (ONU) demonstra que a violência de gênero é usada como uma ferramenta sistemática para reforçar privilégios e desequilíbrios de poder sobre papéis na sociedade e recursos naturais. Com a degradação ambiental tornando os recursos naturais cada vez mais escassos, meninas e mulheres podem precisar se deslocar para áreas mais distantes em busca de água e alimento. Esse deslocamento pode aumentar os riscos de serem sujeitas ao tráfico humano, uma vez que se afastam de seus espaços de segurança.

A interseção entre degradação ambiental e violência de gênero não só agrava as desigualdades existentes, mas também expõe as populações mais vulneráveis a riscos adicionais de exploração e abuso. É crucial que as políticas públicas reconheçam e abordem essas interconexões para proteger efetivamente os direitos humanos das populações afetadas.

Acordos globais e leis brasileiras definem o tráfico de pessoas como um delito envolvendo recrutar, transportar, receber ou aprisionar adultos, crianças ou idosos fragilizados pela pobreza ou degradação ambiental com ameaças ou força bruta, rapto, fraudes e golpes. Qualquer pessoa pode ser alvo deste tipo de crime.

Mesmo trágico e muito complexo, o tráfico de pessoas mantém uma taxa de quase um episódio diário no Brasil, como mostram os 336 crimes de 2023 e os 94 já contados este ano. Nordeste e Sudeste concentram as ocorrências. Os números são do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.

Mas o país também é fonte de indivíduos arrebanhados para trabalho escravo, remoção de órgãos e abuso sexual em locais como Espanha, Portugal, Itália, Suíça, Suriname e Estados Unidos. Ano passado, consulados brasileiros atenderam mais de duas centenas desses casos. As Nações Unidas estimam em ao menos 2,5 milhões as pessoas traficadas anualmente no mundo.

Para conter e jogar luz nessas violações, são necessárias medidas urgentes como ampliar a informação e os canais de denúncias públicos, dar maior capacidade e aproximar forças dentro e fora do país para enfrentar o tráfico de pessoas e fortalecer a fiscalização e as punições ambientais.

Assim, diante da catástrofe que assola o Rio Grande do Sul e das evidências cientificas acima pontuadas torna-se urgente que os governos, federal, estadual e municipal, implementem políticas públicas capazes de reprimir este tipo de crime assegurando e protegendo a dignidade da pessoa humana.

Referência
Disponível em: https://brazil.iom.int/pt-br/resources/o-trafico-de-pessoas-no-contexto-de-degradacao-ambiental-no-brasil Acesso em: 03/06/24

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.