As discussões em torno do Projeto de Lei 1904/2024, que teve a apreciação adiada para o segundo semestre deste ano, para muito além das questões éticas e religiosas acabam recaindo sobre um outro campo: a adoção.
De autoria do Deputado Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), o PL do aborto, ou do estuprador, tem sido alvo de duras críticas desde que foi apresentado, tendo em vista equiparar o aborto acima de 22 semanas ao homicídio, aumentando de dez para vinte anos a pena para quem realizar o procedimento.
Não é a primeira vez que assistimos a adoção ser apontada como a solução ou a justificativa para a manutenção da gestação, afastando-se a possibilidade de aborto, em caso de estupro. No ano de 2022, a juíza Joana Ribeiro Zimmer, em outro caso que ganhou a mídia, utilizou-se da adoção como argumento para que uma menina de 11 anos, vítima de violência sexual, levasse a termo a gestação fruto de aborto. Segundo palavras da juíza, em audiência gravada e reproduzida em rede nacional, bastaria, após o nascimento, entregar o filho à adoção, pois “a tristeza da menina seria a alegria de uma outra família”.
Dois anos se passaram e “adoção” e “aborto” estão novamente sendo inseridos no mesmo contexto. A correlação é leviana e precisa ser evitada.
Para além da violência que se impõe à mulher quando se retira a autorização legal para a realização do aborto, em caso de gestação decorrente de violência sexual, criminalizando-a com pena superior à de quem a violentou, ao apresentarmos a adoção como solução fácil e “humanizada”, invertemos toda a compreensão do próprio instituto da adoção, que nada mais é que medida de proteção à criança e ao adolescente que tiveram seus direitos violados, e que entra em cena tão somente quando todas as outras alternativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente se mostraram ineficazes.
Buscam-se famílias para crianças e adolescentes, e não filhos para postulantes à adoção. É crucial ter em mente quem são os personagens no centro de todo o processo.
Vivemos hoje em uma realidade na qual a demanda de crianças e adolescentes acolhidos e com decisão judicial de colocação em família adotiva representa aproximadamente 1/6 do número de postulantes devidamente habilitados. Traduzindo em miúdos, teríamos seis pretendentes possíveis para cada criança ou adolescente que hoje aguarda por uma família. Ainda assim, essa conta não fecha.
Por que, então, aumentarmos a demanda? “Porque estaríamos falando de bebês”, muitos responderiam. E sabemos que a justificativa tem sua razão de ser, já que a grande maioria dos pretendentes à adoção, segundo os números do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, tem preferência por bebês.
E aqui esbarramos em outra questão, extremamente importante, que não pode ser deixada de lado. O famoso psicanalista inglês Winnicott afirma, dentre suas teorias, que experiências com indivíduos regredidos mostram que possuímos memórias anteriores ao nascimento, de experiências vividas antes mesmo do parto, e que elas podem nos afetar em todas as fases da vida.
Uma gestação fruto de estupro definitivamente não é desejada. Pelo contrário. Traz para a mulher – e, por consequência, para o bebê – sensações de trauma, tristeza, lembranças da violência sofrida e desejo de se livrar delas. Se obrigada a levar a gravidez até o fim, sob pena de ser criminalizada com pena superior à da violência que sofreu, ante o argumento de entregar esse filho para adoção, os sentimentos nutridos durante essas semanas acompanharão este indivíduo durante toda a vida.
Violências não podem ser justificativa para a perpetuação de novas violências. Adoção não é remédio para justificar a criminalização do aborto nos casos em que é legalmente admitido. E violência sexual definitivamente não pode ser vista como uma solução mágica para atender o desejo de postulantes à adoção que aguardam pela chegada de filhos ainda bebês.
Cada violação de direito deve ser enxergada e cuidada individualmente, sob pena de perdermos o que nos diferencia nesse mundo: a humanidade.
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