Construir um mundo onde cada gravidez seja desejada, onde a escolha de cada mulher em relação ao seu corpo e aos seus desejos seja consagrada e respeitada. Esta deveria ser a garantia primeira, o pilar central de um governo em relação às suas mulheres. Todo ser humano tem o direito de dispor do seu corpo, e no exercício desse direito nada é mais fundamental do que a capacidade de decidir de quando e com quem tornar-se mãe.
Esse é um direito fundamental que foi reconhecido em muitos acordos internacionais de direitos humanos nas últimas cinco décadas. Paralelamente, o mundo viu uma melhoria significativa no acesso a métodos contraceptivos eficazes e modernos, uma das principais conquistas da saúde pública recente.
Mas por que no Brasil mais da metade, aproximadamente 62% das gestações, continuam sendo não intencionais, muitas delas provenientes de estupros? Este número assustador é 12% mais alto do que a média mundial, segundo os dados da UNFPA, agência oficial das Nações Unidas que trata das questões populacionais.
A resposta para essa pergunta é obvia: políticas públicas sem solidez ou fundamento, baseadas em trocas de favores e interesses pessoais e um descaso impressionante com a causa da igualdade de gênero.
Na noite da última quarta-feira a Câmara dos Deputados aprovou, sorrateiramente, urgência para votação do Projeto de Lei 1904/24, que equipara o aborto ao homicídio. Um texto que coloca em risco a vida de milhares de brasileiras, especialmente meninas, principais vítimas da violência sexual no país, será votado diretamente no plenário sem passar por discussão nas comissões específicas. Um triste retrocesso.
O projeto, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), aumenta de 10 para 20 anos a pena máxima para quem realizar o procedimento. O tempo de prisão seria, dessa forma, o mesmo para casos de assassinato. Além disso, o texto fixa o prazo de 22 semanas para o procedimento. Atualmente, não há no Código Penal um prazo máximo para o aborto legal, só permitido em nosso país nos casos de estupro, risco de vida da mãe e anencefalia do feto.
Diante desta aberração legislativa é importante ressaltar números. De acordo com os últimos dados de 2022, do Fórum de Segurança Pública, 74.930 pessoas foram estupradas no Brasil. Desse total, 61,4% eram crianças com até 13 anos de idade.
Devemos nos perguntar qual o futuro de um país no qual o poder legislativo protege o estuprador, não a vítima. Se o projeto de lei for aprovado, a pena para as mulheres vítimas de estupro será maior do que a dos estupradores, já que a punição para o crime de estupro é de 10 anos de prisão, e as mulheres que abortarem, conforme o projeto, podem ser condenadas a até 20 anos de prisão.
Quando o aborto é ilegal ou inacessível, as gestações não desejadas se tornam “maternidades forçadas”. Essa vontade de coagir uma mulher a levar adiante uma gravidez proveniente de um estupro tem, obviamente, raízes nos estereótipos de gênero; ela reflete uma concepção discriminatória de que o valor das mulheres e das meninas reside exclusivamente em suas capacidades reprodutivas. De acordo com os tratados sobre os direitos fundamentais, os Estados são, portanto, obrigados a trabalhar para erradicar esses estereótipos prejudiciais, garantindo, em particular, o fim das práticas que os perpetuam.
Não ao Projeto de Lei 1904/24.
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