Com uma ascendência bastante misturada, incluindo heranças africanas e europeias, acabei nascendo com a pele branca – e assim nunca tinha sofrido racismo diretamente. Até que minha filha Any nasceu, e passei a ouvir comentários inesperados, perguntas constrangedoras como “Ela é adotada?”, ou “Mas quem é a mãe dessa menina?”

Quando namorava o pai dela, que é afrodescendente, muitos faziam piadas, dizendo que ele era meu motorista ou jogador de futebol… Na época eu conseguia responder de forma irônica, sem me incomodar muito, mas conforme a Any foi crescendo os comentários passaram a me machucar. As pessoas insistiam em comentar, o tempo inteiro: “até que o nariz dela é fino”, “o cabelo da menina não é tão duro assim”, “ela não é negra, é morena”, “você deu sorte que sua filha puxou seus traços”.

No âmbito escolar este racismo foi ao extremo nos anos em que a Any era a única aluna negra no colégio. Um menino em especial sempre imitava sons e gestos de macaco quando via a Any. Ela frequentemente se queixava disso, eu a encorajava a superar esses desafios com coragem, até que um dia minha filha chegou arrasada em casa, chorando muito. O tal menino havia jogado uma banana na quadra de esporte, onde ela estava, provocando uma gargalhada geral na turma.

Decidi ir até a escola, consegui convencer a diretoria a marcar uma reunião com os pais do menino e, no dia do encontro, cheguei a ouvir o casal na antessala comentando que a “mãe da menina” nem deveria vir, imagina ser chamada na escola por uma brincadeira tão inocente como jogar uma banana, ainda mais que a menina era negra mesmo.

Quando a diretora nos chamou e eu me apresentei, o pai do garoto se gabou de ser médico e de salvar muitas vidas. Na cabeça dele estava melhorando as coisas ao afirmar: “sou médico e salvo qualquer pessoa, inclusive negros baleados”. Eu estava muito assustada, mas respondi prontamente que ele tinha acabado de ser racista novamente, e a mãe só piorava tudo ao dizer que tinha um cabeleireiro negro e tantos amigos moreninhos. Eu ainda comentei:
“Me aponte um amigo negro que sente na mesa de vocês no Natal.”

Ficaram calados, consegui afirmar algumas vezes que eram racistas e o filho deles fazia minha filha chorar – mas ficou por isso mesmo. Nada na escola foi feito em resposta àquela situação, não houve qualquer punição, nada.

Outro episódio ocorreu em uma padaria badalada em São Paulo, em época complicada no cenário político nacional. Estava com minhas filhas, minha irmã e seu namorado. Logo que entramos um casal sentado em uma das mesas começou a gritar, de forma bastante ríspida, afirmando que deveríamos sair de lá, que nossa raça teria que morrer toda… Ninguém da loja tomou qualquer atitude.  Sentimos medo, insegurança, fomos colocados em um cantinho da padaria extremamente apertado, e nada aconteceu com o casal.

As atitudes discriminatórias e olhares tortos são constantes. As pessoas realmente não têm ideia do quão prejudicial isso pode ser. Este discurso pronto, de gente que afirma “ter amigos negros”, não invalida a realidade do racismo persistente. Recusada em trabalhos sem receber qualquer retorno, Any chegou a duvidar de seu próprio talento, mas hoje percebemos que foi rejeitada em alguns testes por causa da cor de sua pele.

Certa vez ela viveu uma situação constrangedora em uma loja de grife famosa, quando precisava arrumar o sapato com certa urgência pois tinha um evento no dia seguinte. O atendente nem relutou ao dizer que infelizmente não seria possível ajudá-la… Em um momento raro, vi minha filha “dando carteirada” e assim, logo que mencionou quem era, o tratamento mudou drasticamente. Na mesma hora providenciaram o conserto do sapato e até serviram champanhe.

Foi doloroso perceber que o respeito muitas vezes é condicionado a ambientes brancos, e que minha filha muitas vezes consegue conquistar a devida atenção porque é famosa. Any enfrenta preconceito, sim, e não apenas por ser mulher, mas também por ser negra, o que vem se refletindo diretamente sobre sua vida e a carreira, iniciada aos oito anos de idade.

Conforme ganho experiência, percebo cada vez mais como não sabia lidar com situações tão embaraçosas. Hoje tudo mudou, reconheço que enfrentamos sérios atos de racismo e que precisamos nos manifestar. É importante destacar que ser antirracista exige agir e falar, não apenas se posicionar teoricamente. A sociedade precisa mudar para que a injustiça não persista.

 

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.