Ele acabara de publicar seu primeiro livro, “Chega de saudade”, sobre a bossa nova – e vindo de São Paulo, na casa de uma amiga no Rio, gostou daquela morena de cabelo curto, então enroscada no tapete com o namorado. Não teve dúvida: logo que conseguiu se aproximar, Ruy lhe deu o exemplar que trouxera para Tom Jobim.

Em apenas alguns dias ela se apaixonou pelo livro, e também pelo autor – o famoso jornalista que iria se consagrar como um dos maiores biógrafos do país, naquele momento iniciando sua carreira literária.

– O mais interessante é que, quando nos conhecemos, sem saber também começávamos a nos tornar escritores – lembra Heloísa Seixas, hoje autora com mais de 20 títulos publicados, quatro vezes finalista do Jabuti. Quando conheceu Ruy Castro, há quase 40 anos, ambos só trabalhavam como jornalistas e tradutores. Ela começava a escrever seu primeiro livro de contos, mas não pretendia mostrá-lo tão rapidamente a Ruy.

– Ele é muito curioso, opiniático… – continua rindo – e não queria que ficasse dando palpite.

Ruy admite que, na verdade, até ficou apreensivo quando Heloísa lhe entregou uma pasta onde estavam três contos que acabara de escrever. E se ele não gostasse?
– Já estava gostando dela, né? Imagina se não gostasse do que a Heloísa escrevia? Seria um grande problema. Levei meses tomando coragem para ler. E fiquei abismado. Como se ela estivesse se preparando a vida inteira, trabalhando como jornalista, para se tornar uma escritora de ficção. Fiquei surpreso ao perceber sua vocação para a palavra, não só a palavra exata, mas a mágica, que existe por trás das coisas.

Logo os dois não apenas se visitavam, em palavras, como foram morar um na vida do outro. Em casas separadas, diga-se de passagem – ela em seu apartamento em Ipanema, ele no Leblon. Só recentemente, na pandemia, resolveram fazer o teste dos gatos – para saber se os bichanos que os dois tinham, cada qual em seu apartamento, conseguiriam viver bem na mesma casa. Deu certo.

Hoje moram na mesma cobertura do Leblon, ela com o escritório no primeiro andar, ele ocupando o andar de cima, e assim muitas vezes passam o dia inteiro sem se ver. Os dois sempre trabalhando em novos livros. Heloísa dedicada à ficção, e o Ruy mais voltado para a não ficção – desde que “Chega de Saudade” foi publicado, inaugurando uma sequência de biografias memoráveis que escreveria sobre alguns de seus heróis, que passaram a ser os nossos também, como Garrincha, Carmem Miranda e Nelson Rodrigues.

Ao longo desses anos juntos Heloísa acabou se dando conta de que, além do escritor, também convivia com um personagem fascinante. Desde a infância seu marido já havia se confrontado algumas vezes com a morte – dedicando-se de forma quase compulsiva à palavra como reação aos fatos trágicos que viveu, como a morte da irmã mais nova, ainda quando era criança, até o alcoolismo e doenças gravíssimas.

Sobre essa saga impressionante ela escreveu “O oitavo selo”, em que transita no terreno da não ficção com elementos ficcionais. No livro – cujo título faz referência ao filme de Ingmar Bergman, “O sétimo selo”, em que um homem joga xadrez com a Morte, ao se saber condenado – ela narra como o protagonista se salva do medo e do horror pela palavra.

– Ruy é um homem da informação, que aprendeu a ler através dos jornais – e não da cartilha. Não gosta que eu fale, mas começou a trabalhar para jornal aos 11 anos, escrevendo sobre futebol. E logo depois teve um programa sobre jazz, e daí nunca mais parou.

Diante da luta feroz contra o alcoolismo, por exemplo, pouco antes que os dois se conhecessem, quando estava recém-separado da primeira mulher, Ruy lembra ter se sentido “a um passo da eternidade” – e foi a palavra que o resgatou daquele inferno:

– Quando seu corpo está totalmente viciado, dependente, como era o meu caso, que estava tomando dois litros de vodka todos os dias, você quase desiste. Como se a vontade de beber fosse maior do que o medo da morte. Foi realmente um pesadelo. Mas depois dos primeiros dez dias internado, sem tomar uma gota de álcool, comecei a me sentir a pessoa mais lúcida do mundo. E as palavras começavam a fazer um novo sentido, como o mantra que eu me repetia: nunca mais quero beber, nunca mais quero beber. Fui retomado pela palavra.

Logo depois dessa internação, nos anos 1980, é que Ruy começou a se dedicar ao projeto de escrever um livro de fôlego, como foi o “Chega de Saudade”, a biografia da bossa nova – que iria redefinir um gênero literário, e a sua própria vida.

Conheça mais essa e outras histórias na íntegra da entrevista dada na FLITI à IstoÉ Mulher – uma das patrocinadoras da Feira Literária de Tiradentes.