Vemos todos os dias pessoas romantizando e simplificando a adoção, dizendo que é um ato de amor. Há muito tempo venho combatendo esse discurso. Esse é o oposto a ele, de que seria um ato de coragem. Ou um “gesto muito bonito”.
Adoção não é caridade. É forma de ser mãe. E ponto. Há muitos anos li uma entrevista com Astrid Fontenelle a respeito da adoção de seu filho e a resposta dela foi uma das melhores até hoje. Em resumo, ela disse que queria ser mãe e a adoção era a melhor forma disso acontecer em sua vida. Por isso ela se decidiu, percorreu todo o processo, com habilitação prévia, definição de perfil, espera pelo contato da Vara da Infância e, enfim, tornou-se mãe.
Dia dessas recebi mensagem de uma moça. Chegou até mim por ser amiga de uma amiga em comum. Ambas mães por adoção – mulheres brancas, como eu, mães de filhos negros. Ela me relatou algumas situações em que a filha estava vivendo, especialmente por ser uma menina negra, dentro de círculos majoritariamente brancos, e, em certo ponto da conversa, disse a frase que vem voltando à minha cabeça desde então: “fui ingênua em achar que o amor superava tudo”.
Não existe beatificação e nem magia. Adoção é para os fortes. Precisa querer, e não é pouco.
Adoção é um ato de vontade. Vontade grande, forte, contínua. Vontade que precisa estar muito bem fundamentado, ou vai sucumbir facilmente aos primeiros testes.
Os desafios vão começar a se apresentar logo de cara, com a demora. Uma burocracia. Papéis, entrevistas, mais documentos, preparação, habilitação, espera, reuniões em Grupos de Apoio à Adoção, mais espera, livros, filmes, amigos tendo filhos ao redor, mais espera, e parece que nunca vai acabar.
Se a vontade não for forte, o projeto não passa dessa fase.
Quando passa, vem a próxima: do mundo virando de pernas pro ar.
Ligação da Vara da Infância, dúvidas sobre conhecer ou não a criança, estágio de convivência, encantamento, medos, vontade de que tudo passe como um filme acelerado para logo estar em casa com o filho inserido na rotina.
Ele vai para casa. E os desafios continuam. Somam-se os da adoção com a maternidade, e muitas vezes com fatores outros, como questões raciais, dificuldade de aprendizagem, de relacionamento na nova vida, nova escola, nova família, novo tudo.
Entramos, sem perceber, em um loop de questionamentos. Isso é da adoção? A idade? As amizades? São testículos?
Cansa. E aí nos damos conta de que amar não é o suficiente, apesar de ser extremamente necessário.
Vale aqui também aquela analogia em tom de brincadeira: a próxima fase é sempre a mais difícil, até porque é desconhecida, e vai exigir que nos reinventemos.
É o amor que vai nos fazer buscar ajuda. Conversar com outras famílias adotivas, ler, frequentar grupos de apoio à adoção, especialmente os trabalhos específicos de pós-adoção, buscar terapia e tudo o mais que seja capaz de nos auxiliar a passar pelos desafios.
Filhos adotivos vêm com histórias das quais não participamos e as quais precisaremos conhecer e acolher. Algumas serão dolorosas, e os acompanharão por toda a vida. Outras, serão aos poucos ressignificadas.
Só amor nunca será o suficiente. Precisaremos de mais.
Precisaremos, acima de tudo, de uma vontade inabalável de seguir e de encarar cada desafio de peito aberto, sem medo de abraçar a história e as peculiaridades dos nossos filhos, para que sigamos, juntos, de mãos dadas, na eterna construção do vínculo que escolhemos todos os dias construir.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.
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