Criticado por grande parte da imprensa internacional, o filme “Som da liberdade”, do diretor mexicano Alejandro Gomez Monteverde, arrecadou mais de US$ 180 milhões em bilheteria nos Estados Unidos, e vem fazendo sucesso comercial também no Brasil, desde sua estreia no final do mês passado. Inspirado na história real de um agente do governo americano, que trabalhou no resgate de crianças da exploração de criminosos bolivianos, o filme suscita polêmica em todos os países em que está sendo exibido.

A imprensa tem acusado “O som da liberdade” de fazer propaganda de teorias conspiratórias ligadas ao movimento de direita QAnon – a distribuidora cristã Angel Studios nega, embora o protagonista do filme, o ator Jim Caviezel, tenha participado de conferências daquele movimento e assumido simpatia pelas ideias de Steve Bannon, estrela da direita americana, estrategista-chefe da Casa Branca no governo Trump.
O enredo que narra a história de um agente federal americano, decidido a fazer justiça com as próprias mãos em terra estrangeira, não se difere muito das dezenas de filmes que consumimos nessa combinação de propaganda militar intervencionista com narrativa de salvador branco. A rigor, o que tem a oferecer é o barulho extra filme provocado pelas reflexões e debates que vem suscitando sobre um tema relevante: o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes.

A explosão do tráfico de pessoas no mundo vem sendo considerada a epidemia do século 21, indicativo de que este crime existe e deve ser enfrentado, para além de pressões religiosas ou partidárias. Uma responsabilidade da sociedade civil, uma bandeira que não deve ser apropriada por nenhum grupo político, mas abraçada pela sensibilização das pessoas, em todos os segmentos sociais, para trabalharmos nas raízes deste fenômeno que se constitui como face contemporânea da escravidão.

Segundo as Nações Unidas, cerca de 1,2 milhão de crianças desaparecem por ano, grande parcela direcionada ao tráfico sexual. A lucratividade financeira do tráfico de pessoas já se equipara ao tráfico de drogas e armas. O número de pessoas traficadas no planeta atinge a casa dos 2,5 milhões, movimentando 30 milhões de dólares na economia do crime. Uma em cada três vítimas do tráfico de pessoas é criança.
A exploração sexual comercial de crianças e adolescentes é considerada a pior forma de trabalho escravo. O tráfico de crianças e adolescentes para fins de trabalho escravo ainda sobrevive no Brasil e no mundo. Portanto, a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes é fruto também da ação de criminosos que transformam pessoas em mercadorias de consumo.

Estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) apontaram a existência de 160 milhões de crianças em situação de trabalho infantil em 2020, representando uma em cada dez crianças em todo o mundo, com quase metade delas (79 milhões) envolvida em trabalhos perigosos, dentre eles a exploração sexual comercial. De acordo com a legislação brasileira, o trabalho infantil se refere às atividades econômicas e/ou de sobrevivência, remuneradas ou não, visando ou não ao lucro, realizadas por crianças e adolescentes com idade inferior a 16 anos.

Esse tipo de exploração é um indicativo de que há um conjunto de elementos em desarmonia, quadro que exige o aprimoramento e a articulação de políticas públicas para que se solucione desde a fome, a pobreza, o atendimento de saúde, acesso à educação, habitação, dentre outros. O comercio sexual de crianças e adolescentes é a ponta do iceberg da desigualdade social. Quando você o vê, é porque uma série de direitos não foram efetivados para aquela criança, para aquele adolescente e para aquela família em situação de vulnerabilidade.

Não existe uma solução mágica e nem a curto prazo. No entanto, deve haver um esforço dos governos federal, estadual e municipal e da sociedade, de maneira articulada, envolvendo Ministérios Públicos, conselhos tutelares, escolas, para se conseguir enxergar verdadeiramente o problema e propor ações mais contundentes e que possam, de fato, impactar nessa realidade perversa. A sociedade civil precisa continuar vigilante para poder cobrar do Estado a proteção integral das nossas crianças e adolescentes.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.