Trazido à tona em função das últimas provas do ENEM, o trabalho doméstico não remunerado provoca uma reflexão urgente: precisamos olhar para o cuidado como a função mais importante que desempenhamos para garantir o futuro, no presente, e promover a reprodução da vida, com todas as necessidades que isso exige. É chegado o tempo da defesa verdadeira da sociedade do cuidado.

Lavar a louça, fazer comida, limpar a casa… e todas aquelas mil tarefas que fazemos, todos os dias, sem que ninguém veja ou valorize, são capazes de regenerar o bem-estar físico e emocional das pessoas. “É um trabalho essencial para a sustentação da vida, a reprodução da força de trabalho e das sociedades, gerando uma contribuição fundamental para a produção econômica, o desenvolvimento e o bem-estar”. (2020, ONU Mulheres e CEPAL).

A PNAD continua de 2022 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) apontou que mulheres que exercem algum trabalho remunerado gastam 6h48 minutos a mais por semana do que os homens, em afazeres domésticos e com os cuidados de pessoas, sejam elas crianças, idosos, enfermos ou pessoas com deficiência. Já dentre aquelas que não realizam trabalho remunerado, a quantidade de horas semanais sobe para 24 horas, o que representa 3h30 por dia.

Dentre aquelas que possuem um trabalho remunerado, as horas semanais dedicadas totalizam 17h48, ou 2h32 por dia. Quando analisadas de maneira geral, as mulheres dedicam 21h18 por semana, enquanto os homens dedicam 11h42.

A partir do recorte racial, as mulheres pretas são as que mais realizam as atividades domésticas e de cuidados, representando 93% do total.
Este é o retrato do trabalho doméstico não remunerado e de cuidados no Brasil. Atividades realizadas majoritariamente por mulheres, em sua maioria negras e de periferia – porque se você é uma mulher branca, assim como eu, tem mais chances de ter alguém realizando boa parte do serviço doméstico e de cuidados na sua casa.

A desvalorização e a invisibilidade de toda força de trabalho dedicada pelas mulheres, entretanto, têm agregado valor para o sistema econômico do nosso país, mesmo que ainda não contabilizado. Em pesquisa recente (2023) da Fundação Getúlio Vargas (FGV IBRE), o trabalho doméstico e de cuidado, se fosse contabilizado, acrescentaria 13% ao PIB brasileiro. Se contado em dinheiro, esse valor seria equivalente a toda produção do estado do Rio de Janeiro.

Com toda essa carga de  responsabilização temos hoje, de forma ainda mais severa, um exército de mulheres sobrecarregadas, adoecidas, sem direitos garantidos, nem aquele tão básico, de ir e vir, sem carregar consigo famílias e comunidades inteiras que dependem do seu trabalho não remunerado e desvalorizado para sobreviver. A pandemia da Covid-19 descortinou esta realidade, há muito denunciada pelos movimentos feministas e de mulheres, em suas defesas por uma justa divisão do trabalho doméstico.

O fato é que hoje tornou-se urgente nos posicionarmos em defesa da sociedade do cuidado, baseada em uma economia cujo cerne seja a justa divisão do trabalho doméstico e de cuidados, para visibilizar, compartilhar, repartir tais tarefas, olhando para esta atividade como um dever de toda a sociedade – afinal todo mundo precisa receber e ofertar cuidados.

Isto nos permitirá desenvolver políticas públicas que garantam direitos sociais, como as creches, escolas de qualidade, e todas aquelas garantias essenciais para que as mulheres, sobretudo as mulheres negras do nosso país, tenham direito a uma vida plena, que as permita trabalhar, estudar e viver uma vida mais igualitária, com justas remunerações, participação política, e direito ao descanso.

Ah, o descanso, a pausa, cuidar de quem cuida, assim como a democratização do cuidado, é essencial para o bem-viver das mulheres, pois o ritmo imposto pelo capitalismo, a cada uma delas, tem sido brutal e desumano, e é sobre recuperar humanidades e construir alternativas viáveis de um mundo mais justo, que falo aqui. Esta também tem sido a defesa de órgãos importantes como a CEPAL e ONU Mulheres, como o caminho possível para recuperarmos o desenvolvimento social e econômico pós pandemia, e garantir um futuro sustentável para as novas gerações, cuidando da sociedade e do planeta, a partir de uma ética baseada na solidariedade, na justiça social, racial e de gênero.

Por isso coloco-me na defesa de uma sociedade que verdadeiramente traga o cuidado para o centro, e faça dele e tudo que dele emerge sua missão de permanecer enquanto humanidade. Fugir para outro planeta não é uma possibilidade para mim e,  acredito, que também não seja para você que lê este texto. O futuro é agora, e cuidar da vida em sociedade e de todas nós, mulheres, que sustentam o mundo, é um caminho que nos permitirá prosperar, enquanto seres humanos, não rumo à um colapso social e ambiental, que hoje está dado, mas a um bem-viver para todas as pessoas.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.