‘Tradwife’: especialista analisa movimento que romantiza o trabalho doméstico

Rebecca Brandon, pesquisadora da Unifesp, analisa como influenciadoras transformaram a rotina doméstica em símbolo de status e moralidade

Envato
No Brasil, o movimento encontra terreno fértil em um cenário polarizado, no qual a discussão sobre o papel da mulher na sociedade voltou mais forte ao debate público. Foto: Envato

Entre vestidos de algodão, bolos recém-saídos do forno e casas imaculadas, um novo tipo de influenciadora se multiplica nas redes sociais: as tradwifes. O termo é uma abreviação de traditional wives (esposas tradicionais), ou seja, mulheres que defendem a vida centrada no lar, a submissão ao marido e uma vida baseada em valores normalmente ligados ao conservadorismo.

Por trás das imagens bucólicas de casas no campo, esconde-se uma romantização perigosa. O movimento se apoia na ideia de que a mulher é mais plena se escolher abdicar da vida profissional para servir à família, o que ignora as desigualdades históricas que estruturam o trabalho doméstico e a dependência financeira, principalmente no Brasil.

“Esse movimento está totalmente atrelado à ascensão, não só no Brasil, mas global, do conservadorismo e também de ideologias religiosas fundamentalistas”, afirma a pesquisadora e mestranda em Ciências Sociais pela Unifesp, Rebecca Brandon. “O ideal das tradwives resgata papéis de gênero criados há décadas, idealizando a família nuclear, branca e de classe média suburbana, como se fosse um modelo universal a ser seguido”. 

Nos Estados Unidos, o fenômeno ganhou força entre influenciadoras como a ex -bailarina e empresária Hannah Neeleman, criadora do TikTok ballerinafarm, que soma mais de 10 milhões de seguidores. Mórmon e mãe de oito filhos, Hannah viralizou ao mostrar uma rotina doméstica idealizada, entre receitas caseiras, filhos e paisagens rurais.

Foto: Reprodução/ ballerinafarm
Hannah Neeleman cozinhando em um vídeo publicado em sua conta.

Romantização nas redes sociais

No Brasil, o movimento encontra terreno fértil em um cenário polarizado, no qual a discussão sobre o papel da mulher na sociedade voltou mais forte ao debate público. Em um país onde as mulheres ainda realizam a maior parte das tarefas de cuidado, a idealização da dona de casa perfeita não é um fenômeno isolado. “Há uma contradição central nesse discurso”, observa Rebecca.

“Muitas dessas mulheres afirmam estar fazendo uma escolha pessoal, mas, do ponto de vista sociológico, uma escolha individual não pode ser analisada fora da estrutura de classe. Essa opção só é possível porque houve conquistas feministas anteriores e porque essas influenciadoras pertencem a uma classe privilegiada. São mulheres com maridos de alto poder aquisitivo, e isso não representa a realidade da maioria”, comenta. 

A realidade do trabalho doméstico no Brasil

Enquanto as tradwifes glamourizam o trabalho doméstico, as estatísticas mostram que a realidade está longe de ser ideal. Segundo a PNAD Contínua (IBGE), as mulheres brasileiras dedicam, em média, 21 horas semanais a afazeres domésticos e cuidados de pessoas, quase o dobro do tempo gasto pelos homens. Mesmo entre as que têm jornada de trabalho formal, o cuidado com a casa e os filhos continua recaindo majoritariamente sobre elas.

O chamado “segundo turno”, conceito criado ainda nos anos 1980 para descrever essa dupla jornada, nunca deixou de existir. Estudos do Ipea estimam que, se o trabalho doméstico não remunerado fosse contabilizado, ele representaria cerca de 11% do PIB brasileiro. O que muda agora é o discurso: séculos de sobrecarga e dependência financeira ganham filtros e legenda inspiracional.

De acordo com a pesquisadora, essa romantização é especialmente perigosa porque “o conteúdo produzido por influenciadoras tradwives usa uma estética de encanto e nostalgia para que as mulheres assimilem papéis de gênero opressores”. Ela explica que, nas redes, “uma vida doméstica aparece como simples, bela e estável, quando na realidade é um trabalho exaustivo, não remunerado e historicamente desvalorizado”.

Contradições no discurso 

A narrativa das tradwives recorre à noção de ‘escolha individual’, sem considerar, contudo, o contexto social e econômico que delimita as possibilidades das mulheres. “Essa liberdade de escolha é um privilégio para poucas. Quando olhamos para a estrutura social, o movimento é, na verdade, uma reafirmação regressiva de hierarquias de gênero e de classe”, observa.

A pesquisadora lembra ainda que o contexto pós-pandemia contribuiu para o fortalecimento dessa estética conservadora. “Durante a pandemia, as mulheres foram as mais afetadas pelo fechamento das escolas e pelo aumento da carga doméstica. No pós-pandemia, faltaram políticas públicas que reinserissem essas mulheres no mercado de trabalho. Isso cria um cenário ideal para que a ilusão de que o lar é um espaço mais tranquilo e seguro volte a ser vendida”, explica. 

Essa “ilusão”, diz, tem consequências diretas na formulação de políticas públicas. “Esses movimentos conservadores reforçam estereótipos ao associar feminilidade à submissão, ao cuidado e à beleza. Isso dificulta avanços em pautas como a autonomia financeira e a ampliação da presença feminina em espaços de decisão”, explica. 

Por fim, a pesquisadora defende que o combate à romantização do trabalho doméstico passa por reconhecer seu valor real. “O trabalho doméstico é essencial para a reprodução social e econômica. É preciso reconhecê-lo como trabalho, garantir creches públicas, escolas integrais e políticas de redução da jornada de trabalho. Só assim é possível reduzir a sobrecarga feminina e enfrentar a ascensão de discursos que idealizam a submissão”.