Logo depois de termos acompanhado a história da escravidão ser contada por vozes negras, no desfile do Carnaval no Rio – quando o livro “Um defeito de Cor” foi o tema contagiante da Portela – retornamos ao debate de uma lei crucial para a educação, no início de mais um ano letivo. Aprovada em 2003, a lei 10.639 tornou obrigatório o ensino de História e Cultura afro-brasileira na educação básica. E o que vem acontecendo desde então?
          Uma pesquisa realizada pelo Instituto Alana e pelo Geledés Instituto da Mulher Negra, cujos resultados foram divulgados em abril de 2023, apontou que mais de 70% das cidades no Brasil não cumprem o que determina a Lei 10.639/03. Segundo a pesquisa, realizada no ano de 2022, 53% dos municípios realizavam apenas ações pontuais, enquanto 18% nada faziam.
Estamos aqui falando de ensino público municipal, já que os municípios são os maiores responsáveis pela educação básica.
Os principais motivos para os números, que não apontam tendência de significativa alteração, pelo menos a curto prazo, são traduzidos como decorrentes da ausência de compromisso político e engajamento dos atores do processo educacional como um todo.
Segundo a previsão legal, os conteúdos incluindo história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional deveriam ser ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial em Educação Artística, Literatura e História para os Ensinos Fundamental e Médio.
Crescemos ouvindo que a história é contada pelos vencedores. Poucas vezes nos perguntamos “quais histórias” e “quais vencedores”. Num movimento automático e romanceado, pensamos em contos de fadas e filmes de cavaleiros.
Acontece que, quando dizemos isso, estamos falando também na nossa história, e dos detentores da narrativa dominante e eurocentrada que sempre nos guiou, seja nos bancos escolares, seja nas crenças populares.
Por séculos, o que nos foi ensinado sobre os negros nos bancos escolares é que eles vieram da África, como se “África” fosse um país, um lugar único. Que eles aqui chegaram e foram comercializados como escravos, com episódios de revolta, resistência e muito sofrimento – e que em 13 de maio de 1888 passaram a ser livres, a partir da assinatura da Lei Áurea, pelas mãos da Princesa Isabel.
Um resumo muito curto, mas que dá o panorama de como, por muito tempo, aprendemos e repetimos tudo o que entendíamos ser a história que cabia aos povos africanos – que tanto contribuíram para a formação da população que hoje somos.
Não é que a história dos livros estivesse errada. Ela só não foi contada por todos os pontos de vista. África não é única. São muitas. Não é um país. É um continente inteiro. Não é só pobreza, sofrimento e escravidão. É também beleza natural, riqueza, conhecimento ancestral, cultura, terra de reis e rainhas.
E porque não acessamos essa parte da história?
Epistemicídio. Apagamento. Morte do conhecimento, diante de uma narrativa única, naturalizada como sendo a verdadeira. A correta.
Ante a falta de conhecimento, de treinamento, de incentivo e de real mudança de paradigma, as escolas que realizam alguma atividade concentram essa programação em datas como 13 de maio e 20 de novembro.
Não é o suficiente. E a abordagem única, solidificando a imagem do negro africano como o escravo, subalterno, sofredor, em nada se aproxima do real cumprimento do que veio trazer a Lei.
Estamos falando de uma normativa que estabelece obrigações sem, no entanto, trazer penalidades pelo descumprimento. Talvez esse seja o motivo pelo qual, 21 anos depois de sua entrada em vigor, ainda tenhamos que nos questionar como garantir que uma lei, de tamanha importância para a formação de um povo como o brasileiro, seja cumprida.
Quem sabe a grande força para mudarmos a realidade não esteja em cada uma de nós, e nos espaços que ocupamos dentro das escolas dos nossos filhos?
Cabe a cada uma questionar, pedir e cobrar que a história da África e dos africanos, da luta dos negros no Brasil, da cultura negra e participação do negro na formação da sociedade brasileira deixem de ser apenas texto de lei, ou pontos espaçados em datas específicas, e passem a fazer parte dos planos de Ensino Fundamental e Médio.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.